sexta-feira, 21 de março de 2008

10.4.1. Plano da Viagem

O Plano da Viagem é constituído pela narração dos acontecimentos que respeitam à viagem entre Lisboa e a Índia.
Dentre esses acontecimentos, destacam-se os seguintes:
  • narração do percurso da frota portuguesa até Melinde por Camões (cantos I e II);
  • narração da História de Portugal até ao início da viagem, em forma de discurso retrospectivo dirigido ao rei de Melinde e a pedido deste (cantos III, IV e V, estância 85);
  • narração da primeira parte da viagem, desde Belém até à passagem do Cabo da Boa Esperança, local onde, supostamente, se situaria o Adamastor, e do surgimento do escorbuto, também em discurso retrospectivo;
  • narração do último troço da viagem entre Melinde e Calecute (canto VI).

Cronologicamente, a viagem observou as seguintes etapas:

  • partida de Belém a 8 de Julho de 1497 (IV, 84 - ss.);
  • peripécias da viagem;
  • paragem em Melinde por dez dias;
  • chegada a Calecute a 18 de Maio de 1498;
  • regresso a Lisboa a 29 de Agosto de 1498;
  • chegada de Vasco da Gama a Lisboa a 19 de Agosto de 1499 (a nau de Nicolau Coelho tinha chegado dois meses antes).

A viagem não constitui realmente uma acção, nem tem intriga, nem personagens propriamente ditas. Falta-lhe autonomia. Para que a viagem constituísse uma acção, seria necessário que os seus protagonistas se debatessem com as dificuldades e as resolvessem graças às suas forças e engenho. De facto, não vemos Vasco da Gama arriscar-se e agir, molhar-se na água, nem desenredar-se de intrigas, nem manchar-se de sangue (excepto na escaramuça com indígenas no episódio de Veloso, por ele próprio descrita ao rei de Melinde), nem ter uma vontade, um capricho ou uma paixão. Serve apenas para recitar os belos discursos de Camões. O único ensejo que tem de resolver um problema pelos seus próprios meios, isto é, sem a intervenção dos deuses, ocorre quando o Catual o detém em Calecut. Não vemos também Vasco da Gama falar aos seus marinheiros, que, de resto, parecem não existir, são uma abstracção que povoa as naus. Uma única personagem se nos depara, numa visão fugidia: Fernão Veloso, numa atitude nada heróica (em fuga) e num sito típico de fanfarronice peninsular.
Por outro lado, pode dizer-se que a viagem não tem história nem enredo. Os marinheiros limitam-se a deixar-se transportar nas mãos dos deuses. Se estes não existissem, nunca saberíamos como é que os nautas alcançaram a Índia, que perigos venceram e de que forma. A unidade orgânica do relato da viagem não reside nem na personalidade dos heróis, nem em qualquer intriga intrínseca à própria viagem. Há, todavia, no que respeita à luta com o mar, quadros cheios de relevo e precisão, como a Tromba Marítima, o Fogo de Santelmo e o Escorbuto, e todo o canto V, um dos melhores da obra, que se poderia chamar “Trabalhos do Mar”. Mas esses episódios, onde falta sempre a presença humana, são dados de forma descritiva, exemplificativa, numa sequência oratória, e não narrativa, no discurso ao rei de Melinde. E a história da viagem de Vasco da Gama, que constitui a parte propriamente narrativa da obra, fica reduzida a uma crónica rimada, mas sem as virtudes das boas crónicas.