segunda-feira, 24 de março de 2008

10.4.4. Plano das Consideraçõe Pessoais do Poeta

Este plano é aquele em que Camões tece comentários, muitas vezes satíricos, sobre matérias diversas, normalmente no início e fim dos cantos:

  • a fragilidade da vida humana face aos perigos do mar e da terra (I, 105-106);
  • o desprezo a que os portugueses votaram as Artes e as Letras (V, 91-100);
  • o valor da glória e das honras por mérito próprio (VI, 95-99);
  • crítica aos povos que não seguem o exemplo português (VII, 2-14);
  • a ingratidão de que se sente vítima por parte da sociedade (VII, 78-87);
  • lamento face à importância dada ao dinheiro, fonte de corrupção e traição (VII, 96-99);
  • os modos de atingir a imortalidade, condenando a cobiça, a ambição e a tirania (IX, 92-95);
  • a decadência da pátria (X, 145);
  • a invectiva a D. Sebastião a tomar medidas no sentido de corrigir e repor o país na senda do êxito (X, 146-156).

10.4.3. Plano da Mitologia

Formalmente, a unidade de Os Lusíadas é estabelecida pela intriga dos deuses, visto que estes estão em cena desde o princípio até ao fim da obra (excepto na introdução e na conclusão): abre com o episódio do Consílio dos Deuses e termina com o da Ilha dos Amores. As personagens mitológicas têm uma vida que falta às personagens históricas: são aquelas os verdadeiros seres humanos, que sentem, se apaixonam, intrigam. Vasco da Gama é muito mais hirto e frio que o Adamastor, não obstante este ser um cabo. E ninguém tem a presença, a força, a personalidade provocante de Vénus.

A acção consiste no seguinte: Vénus, auxiliada por Marte, seu amante, pretende ajudar os portugueses a chegarem à Índia; Baco, que entende que o Oriente é domínio seu, opõe-se-lhe, provocando a animosidade dos povos costeiros, convencendo ainda os deuses marítimos a desencadearem uma tempestade e, finalmente, induzindo os mouros a atacarem Vasco da Gama. Mas Vénus, vigilante, intervém junto de Júpiter, mobiliza as ninfas do mar, que impelem as naus para fora do perigo, e, seduzindo os deuses do mar, consegue aplacar a tempestade. Finalmente, para premiar os portugueses, prepara-lhes, com a ajuda de seu filho Cupido, uma ilha de delícias, onde eles, conubiando-se com as ninfas, se tornam divinos e são admitidos à visão do cosmos com Vasco da Gama à frente, ele próprio tornando-se esposo da deusa do mar.
Assim, é na intriga dos deuses que radica a verdadeira acção com princípio, meio e fim.

Através da mitologia, Camões exprime algumas tendências do Renascimento:
  • a vitória dos homens sobre os deuses, que personificam os limites impostos pela tradição à iniciativa humana;
  • a confiança na capacidade humana para dominar a natureza;
  • a concepção da natureza como ser vivo;
  • a afirmação (virtual) de Deus como imanência;
  • a crença na bondade da natureza;
  • a identificação da lei da razão com a lei da liberdade;
  • a destruição da noção de pecado.

    N’ Os Lusíadas, existem vários tipos de mitologia:
    pagã: os deuses pagãos greco-romanos;
    cristã: Deus;
    mista: coexistência das duas anteriores;
    céltica/mágica: fadas, bruxas, feiticeiras.

10.4.2. Plano da História de Portugal

A História de Portugal, exposta em discursos (de Vasco da Gama ao rei de Melinde e de Paulo da Gama ao Catual, para a história passada em relação à viagem – 1498) e em profecias (de Júpiter, do Adamastor, da ninfa Sirena e de Tétis, em relação à historia futura no que diz respeito à viagem), não tem uma unidade intrínseca.
Uma parte dessa história é dada em sequência cronológica e consta do discurso de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Outra parte é dada em quadros soltos, como são as pinturas (“bandeiras”) que Paulo da Gama explica ao Catual, ou as profecias.
Esta sensação de descontinuidade é agravada pelo facto de os feitos serem, na maior parte, proezas individuais de guerreiros, faltando um ser colectivo de que os indivíduos sejam formas transitórias (cf. Fernão Lopes, Crónica de D. João I). O “peito ilustre lusitano” é uma abstracção incapaz de encarnar as proezas sucessivas dos guerreiros. Há alguns belos momentos (a batalha do Salado, a fala da Formosíssima Maria, a batalha de Aljubarrota, o episódio de Inês de Castro, as sínteses de Tétis), mas são conjuntos soltos, contíguos a outros momentos. Não se vê formar-se uma nação, e a ideia de pátria resulta uma noção abstracta: está nos sentimentos do poeta e não nos factos que narra. Não existe uma acção de conjunto nem heróis, que se encontram reduzidos a puras abstracções. Afonso Henriques, Nuno Alvares Pereira, D. João I, Duarte Pacheco, D. Fuas Roupinho ou Geraldo Sem Pavor não têm caracterização própria, não são personalidades diferenciadas, como são, por exemplo, Aquiles e Ulisses, heróis da Ilíada e da Odisseia.
Por outro lado, a sequência das batalhas e dos guerreiros, passados ou futuros, é dada em discursos e obedece às regras da oratória: ora é uma sequência cronológica (Vasco da Gama), ora uma selecção de profecias (Júpiter, no canto II, para consolar Vénus, prevê alguns triunfos; no canto V, Adamastor antecipa alguns casos trágicos como castigo pelo atrevimentos dos portugueses; no canto IX, Tétis profetiza as guerras no Oriente).
Ora, em certo sentido, a oratória é o contrário da epopeia. Na oratória, só tem vida própria o orador, personagem única, em face do público; na epopeia, pelo contrário, como no romance, o autor despersonaliza-se em benefício das personagens, sendo nestas que reside a vida.
Desta forma, a narração da Historia de Portugal e dos feitos dos portugueses é caracterizada pela ausência de uma acção de conjunto; são quadros que se sucedem cronologicamente, mas que não revelam uma ideia de conjunto.

O plano da História de Portugal que a obra apresenta é o seguinte:
  • Em Melinde, Vasco da Gama narra ao rei os acontecimentos de toda a nossa história, desde Viriato ao reinado de D. Manuel I;
  • Em Calecut, Paulo da Gama apresenta ao Catual episódios e personagens representados nas bandeiras;
  • A história posterior à viagem é narrada através de profecias:
    - Júpiter profetiza “feitos ilustres” no Oriente e vitórias tão retumbantes que causarão inveja a Marte (II, 44-45);
    - o sonho profético de D. Manuel: dois velhos (rios Indo e Ganges) vaticinam a chegada à Índia por mar no seu reinado (IV, 66-75);
    - Adamastor profetiza “ventos e tormentas desmedidas”, “naufrágios e perdições” para a gente que profanou o seu mar. Refere-se a D. Francisco de Almeida, por exemplo (V, 42-48);
    - a ninfa Sirena descreve as glórias futuras dos portugueses no Oriente (X, 10-74);
    - Tétis aponta os lugares onde os portugueses hão-de realizar grandes feitos e atingir a imortalidade.