sexta-feira, 18 de junho de 2010

José Saramago: 16/11/1922 - 18/06/2010


«Requiescat in pace!»

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Exame Nacional 2010 - Correcção

GRUPO I

A

1. A primeira estrofe remete-nos para o regresso dos marinheiros portugueses à sua pátria - concretamente, a Lisboa («Até que houveram vista do terreno / Em que naceram...») -, numa viagem que decorreu tranquilamente, pois o tempo estava ameno («Com vento sempre manso e nunca irado...» - v. 2) e o mar calmo («... cortando o mar sereno...» - v. 1), e para a glória que, com os seus feitos, alcançaram e que agora vêm entregar ao rei para seu engrandecimento e da Pátria («E à sua pátria e Rei temido e amado / O prémio e glória dão (...) / E com títulos novos se ilustrou.» - vv. 6-8).

2. O sujeito poético começa por se mostrar cansado e desiludido por «Cantar a gente surda e endurecida.»(v. 12), visto que está corrompida pela «cobiça» e num estado de desânimo e apatia, o que origina uma ausência de fervor patriótico e de ânimo.
          Perante este panorama, o sujeito poético interpela o rei, apelando a que reconheça o valor dos seus «vassalos excelentes», os quais possuem as qualidades necessárias à restauração da grandeza e orgulho da Pátria: coragem, espírito de missão, espírito de sacrifício. Neste sentido, o sujeito poético faz contrastar a situação do presente (de apatia) com o passado, representado pelos heróis que ele canta / celebra, que se sacrificaram, enfrentando guerras e perigos vários, incluindo a própria morte, para engrandecerem o Rei e a Pátria («Que vencedor vos façam, não vencido.» - est. 184, v. 40), e que se mostraram sempre prontos, obedientes e felizes por os poderem servir.

3. A enumeração presente na estância 147 traduz as virtudes dos «vassalos excelentes» do rei, que suportaram os mais diversos obstáculos e perigos (fomes, vigias, guerras, climas adversos, naufrágios, a própria morte), sempre com coragem e determinação inexcedíveis («Quais rompentes liões e bravos touros...» - estância 147, v. 26). Por outro lado, salienta esses mesmos perigos e obstáculos que tiveram de enfrentar e vencer.

4. O sujeito poético mostra-se cansado e desiludido («Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida...» - est. 145, vv. 9-10) por o seu canto não ser escutado pela «gente surda e endurecida», que não reconhece o seu talento e o mérito, ocupada que está na satisfação da «cobiça».
          Por outro lado, o sujeito poético mostra-se orgulhoso dos «vassalos excelentes», pois representam a glória, a coragem  e o espírito patriótico, dispondo-se a enfrentar os maiores perigos e a desenvolver os maiores sacrifícios somente para engrandecerem o Rei e a Pátria («Olhai (...) / Quais rompentes liões e bravos touros...» - est. 147, vv. 25-26; «Por vos ervir, a tudo aparelhados / De vós tão longe, sempre obedientes...» - est. 148, vv. 33-34).
          Além disso, ele mostra-se espantado pela ausência de orgulho pátrio e de ânimo nos seus contemporâneos, bem como pela cobiça e corrupção que os dominam («No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza.» - est. 145, vv. 15-16).


B

          Blimunda e o sonho de voar:
» a união dos seus poderes sobrenaturais / mágicos (a vidência) ao saber de Bartolomeu, à força física de Baltasar e à arte de Scarlatti;
» a recolha das duas mil vontades, necessárias ao voo da passarola;
» a observação atenta dos materiais de construção da passarola;
» a «Santíssima Trindade» que constitui com Bartolomeu e Baltasar.
» a função, conjuntamente com Baltasar, de velar pela manutenção e conservação da passarola.



GRUPO II

Versão 1:                                                  Versão 2:
     1. - C                                                            B
     2. - B                                                            C
     3. - C                                                            B
     4. - B                                                            D
     5. - C                                                            B
     6. - B                                                            A
     7. - A                                                            C

8.
     Versão 1:                          Versão 2:
          a - 6                                    7
          b - 8                                    6
          c - 4                                    8
          d - 2                                    3
          e - 7                                    2



GRUPO III

» Tema - A viagem como possibilidade de descoberta do outro e de si mesmo.

» Argumento 1: Viajar contribui para a descoberta de pessoas diferentes, consequentemente de hábitos, usos e costumes diversos dos nossos.

» Exemplo(s) 1:

          a) X foi ao Brasil e descobriu um povo mais alegre, mais desprendido e mais festivo do que o português;

          b) Durante o Estado Novo, Portugal era um país fechado e só quem, esporadicamente, viajava tinha acesso a outras realidades e conceitos, como liberdade, democracia, cultura...

» Argumento 2: Viajar muda a forma de ver e pensar o mundo.

» Exemplo(s) 2:

          a) A viagem de finalistas da Maria foi à Ásia. Ao constatar a miséria local, decidiu aderir a missões humanitárias no sentido de auxiliar as populações locais;

          b) O meu tio Custódio era profundamente racista, característica que fora suscitada pela sua participação na guerra colonial. Quando emigrou para oes Estados Unidos, o contacto permante com pessoas de cor (enquanto vizinhos, colegas de trabalho...) alterou a sua postura.

» Contra-argumento: Hoje, existem outras formas de «viajar».

» Exemplo: A Internet - o «Google-Maps», o «Google-Earth»...

» Conclusão:
          - O acto de viajar enriquece-nos cultural e humanamente / socialmente;
          - A viagem abre horizontes e desperta-nos para outros e outras realidades, como sucedeu com os descobrimentos portugueses.

Exame 2010 - 1.ª Chamada

          Estarei ocupado numa reunião de avaliação do 10.º ano até cerca das dezanove horas. Após o jantar, apresentarei aqui uma proposta de resolução.

          Para já, a nota de que a interpretação (grupo I) era acessível, com algumas perguntas do grupo II a serem (quase) de 6.º ano.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Tempo do discurso

          O tempo do discurso é revelado através da forma como o narrador relata os acontecimentos. Ele pode apresentá-los de forma linear, optar por retroceder no tempo em relação ao momento da narrativa em que se encontra ou antecipar situações.

1. Analepses
  • a referência a 1624: a explicação, em parte, da construção do convento como consequência do desejo expresso, nesse ano, pelos franciscanos, de possuírem um convento em Mafra;
  • a referência à batalha de Jerez de los Caballeros, em “Outubro do ano passado”;
  • D. Maria Ana Josefa "chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa...";
  • D. João V é "um homem que ainda não fez vinte e dois anos...";
  • "S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze." (esta analepse e a anterior permitem deduzir a data de 1711 como a que marca o início da acção - 1211 + 500 = 1711; D. João V nasceu em 1689 + 22 anos = 1711);
  • a referência ao facto de o primeiro auto-de-fé ter acontecido "dois anos depois de se queimarem pessoas em Lisboa", que remete oara 1709;
  • o regresso da nau de Macau, que partiu "há vinte meses", ainda Sete-Sóis andava na guerra;
  • o nascimento e baptizado da infante Maria Bárbara ou do infante D. Pedro, que morrerá com dois anos;
  • o nascimento do futuro rei D. José em 1714.
2. Prolepses
  • as mortes do sobrinho de Baltasar e do infante D. Pedro;
  • a morte de Álvaro Diogo, que viria a cair de uma parede durante a construção do convento;
  • o prenúncio da morte da filha do Visconde de Mafra para daí a dez anos: "... não vai haver muita música na vida desta criança (...) daqui a dez anos morrerá e será sepultada na igreja de Santo António...";
  • a informação sobre os bastardos que o rei iria gerar, filhos das freiras que seduzia: "... por isso se diverte tanto com as freiras (...) que quando acabar a sua história se hão-de contar por dezenas os filhos assim arranjados...";
  • as referências aos cravos (outrora, nas pontas das varas dos capelães; muito mais tarde, símbolos da revolução do 25 de Abril);
  • a associação entre os possíveis voos da passarola e o facto de os homens irem à lua no século XX;
  • a alusão ao tipo de diversões típicas do séc. XVII;
  • a referência à futura existência de cinema e aviões: "... para vir o cinema ainda faltam duzentos anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a passar...".
3. Sumários
  • "Tornou o padre aos estudos, já bacharel, já licenciado, doutor não tarda.";
  • "Aí está Junho".
4. Elipses
  • alguns períodos em que Baltasar e Blimunda estão em Mafra ou em S. Sebastião da Pedreira;
  • as viagens do padre Bartolomeu de Gusmão ao estrangeiro, nomeadamente à Holanda;
  • o período que o padre passou em Coimbra a estudar;
  • o período de nove anos, correspondente à procura de Baltasar por parte de Blimunda: "Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. (...) Milhares de léguas andou..."

Tempo da história

          As referências cronológicas do romance são escassas ou descortinam-se por dedução.
  • 1711 ‑ D. João V promete “construir um convento de franciscanos na vila de Mafra” se a rainha lhe der um herdeiro.
  • 1714 ‑ Nasce o infante D. José, futuro rei, filho de D. João V e de D. Maria Ana.
  • 1717 ‑ Início da construção do Convento de Mafra, que decorrerá até 1730 (para agradecer o nascimento de D. José).
  • 1723 ‑ Surto de febre amarela em Lisboa.
  • 1724 (19 de Novembro) ‑ Furacão em Lisboa.
  • 1725 ‑ Os casamentos dos príncipes e das princesas está já a ser preparados.
  • 1728 ‑ D. João V expressa o desejo de inaugurar o convento no dia do seu 41.º aniversário.
  • 1729 ‑ Casamento dos príncipes portugueses (D. José e D. Maria Bárbara) com os príncipes espanhóis (Fernando e D. Maria Vitória de Bourbon).
  • 1730 ‑ Sagração da basílica do convento.
  • 1730 ‑ Desaparecimento de Baltasar.
  • 1739 ‑ Blimunda procura Baltasar durante nove anos.
  • 1739 ‑ Auto-de-fé (18 de Outubro), no qual são queimados Baltasar e António José da Silva.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Espaço psicológico

1. Os sonhos:
  • os sonhos do rei de da rainha contrastam com os das outras personagens, sobretudo porque evidenciam o desamor que marca a relação do casal real: D. João V sonha com a sua própria imortalidade, com a descendência e com o convento, enquanto D. Maria Ana sonha com o cunhado;
  • Baltasar sonha com Blimunda, com o trabalho, com os animais, a terra, o ar;
  • Baltasar e Blimunda têm sonhos comuns e, por vezes, sonham em conjunto com o padre Bartolomeu de Gusmão, nomeadamente no que diz respeito à passarola, o que evidencia o profundo envolvimento das três personagens na realização daquela obra, ao contrário da construção do convento, executada à custa do trabalho de milhares para a realização do sonho de um só - D. João V.
2. Os pensamentos:
  • os pensamentos das personagens revelam o seu mundo interior, os seus desejos, sonhos e ambições.
3. A atmosfera do romance
  • A atmosfera do romance é densa e pesada, em virtude da religiosidade opressiva, com traços de fanatismo, imposta pelos clérigos e pelas ordens religiosas que manobram a vida dos lisboetas, os habitantes da corte, os operários que trabalham nas obras do Convento de Mafra. Tudo parece girar em função da motivação religiosa: desde o nascimento da herdeira real, resultado de uma promessa, à construção do convento. A própria rainha vive dominada pelo fanatismo religioso.
  • Por outro lado, à excepção das touradas, todos os divertimentos e acontecimentos importantes ou são de cariz religioso, ou têm a ver com a Igreja, ou misturam o religioso e o profano (como os festejos que antecedem a procissão do Corpo de Deus), ou ainda a religião e a luxúria (por exemplo, a procissão da penitência e as saídas das mulheres para visitar as igrejas durante a Quaresma). Pairando sobre tudo isto está sempre a mancha negra da Inquisição e os autos-de-fé, para gáudio e elevação espiritual de nobres e plebeus.
  • O sermão proclamado aquando do transporte da pedra e após a morte de Francisco Marques representa a demagogia exercida pelo clero sobre o povo ignorante.
  • O lar de Marta Maria e João Francisco distinguem-se desta imagem profundamente negativa da sociedade portuguesa, pela tolerância com que recebem o filho e a nora, que suspeitam não estar casados conforme mandam as leis da Igreja -, não questionando algumas estranhezas que notam em Blimunda, embora essa tolerância não seja tão grande que a aceitassem se ela fosse uma cristã-nova.

Espaço social

          O espaço social do Memorial concentra-se em torno de dois locais - Lisboa e Mafra - e procura recriar a sociedade portuguesa - cortesão e popular - dos primeiros decénios do século XVIII, focando aspectos como a Inquisição, as festividades, a corte, a escravatura, as injustiças, a feitiçaria, os autos-de-fé, os rituais religiosos e cortesãos, as epidemias, etc.

1. LISBOA

          Citando Auxília Ramos e Zaida Braga, responsáveis intelectuais pela coleccção RESUMOS, da Porto Editora, «Lisboa aparece descrita através de uma série de sensações auditivas (pregões, vozes alteradas, toques dos sinos, das trombetas, rufos de tambores, salvas de tiros anunciando a chegada ou a partida das naus, o som monocórdico das rezas, das ladainhas e da sineta dos frades mendicantes) que constroem a imagem de uma cidade - apesar de, na voz do narrador, parecer 'tão quieta' - em constante movimento.» (pág. 23).
          Em Lisboa, são vários os ambientes que constroem a visão epocal da capital do reino:

           1.1. O Paço:
  • A subserviência e o vazio dos gestos repetidos e inúteis por parte do enxame de cortesãos que rodeiam o rei e a rainha;
  • Os aspectos caricaturais que definem a relação «amorosa» dos monarcas (o cerimonial, a ausência de afectividade, intimidade e amor, etc.).
          1.2. O Entrudo e a Procissão da Quaresma:
  • A religião enquanto pretexto para a prática de excessos e desvarios (a satisfação de prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas (as pessoas comem e bebem em demasia, dão «umbigadas pelas esquinas», atiram água à cara umas das outras, batem nos mais desprevenidos, tocam gaitas, espojam-se nas ruas...);
  • A penitência física dos pecados da carne (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma após o desregramento do Entrudo (é tempo de «mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se...»);
  • As manifestações de fé caracterizadas pela histeria, pelo sadomasoquismo e pelo primitivismo: as pessoas arranham-se, arrastam-se pelo chão, puxam os cabelos, esbofeteiam-se, autoflagem-se para gáudio das mulheres e amantes que assitem à procissão das janelas;
  • Os comportamentos das mulheres que reclamam mais violência e vigor na «actuação» do seu «servidor» e obtêm prazer do actos de autoflagelação dos penitentes;
  • A alteração dos comportamentos femininos: as mulheres, nesta época, são livres de percorrer sozinhas as ruas e de frequentar as igrejas, comportamento que facilita o adultério;
  • A alteração periódica da mentalidade machista masculina: os homens «fecham os olhos» aos comportamentos femininos;
  • A sensualidade e o misticismo.
          Findos o Entrudo e a Quaresma, a velha ordem é restabelecida e a mulher regressa à sua reclusão caseira, ocupando-se dos trabalhos domésticos, e à submissão, enquanto o homem retoma a sua autoridade (pp. 32-33).

          1.3. As histórias de milagre e de crimes:
  • A superstição e a crendice;
  • A superficialidade;
  • A libertinagem.
          1.4. Os autos-de-fé:

          O auto-de-fé é apresentado como um «dia de alegria geral», dado que as pessoas saem, em massa, à rua, ansiando por assistir aos suplícios a que serão submetidos os condenados, incluindo a sua morte, e que envolve uma série de rituais:
  • as mulheres apresentam um comportamento similar ao manifestado durante a procissão da Quaresma: exibem-se às janelas, cuidadosamente arranjadas, e assistem ao desfile dos condenados;
  • o povo, eufórico, grita impropérios aos condenados que desfilam;
  • os religiosos seguem uma organização clara: primeiros os dominicanos, de seguida os inquisidores;
  • os sentenciados transportam círios nas suas mãos e vestem-se de acordo com a condenação com que foram «contemplados»;
  • os condenados são castigados de acordo com a gravidade da sua culpa, dos seus «crimes»: uns são açoitados, outros são degredados, outros são garroteados e outros queimados vivos;
  • os que assistem à queima dos condenados à fogueira dançam diante da mesma;
  • o rei, os infantes e as infantas celebram o final do auto-de-fé com um magnífico jantar na Inquisição.
          Em suma, os autos-de-fé representam:
  • A representação religiosa e política;
  • O fanatismo;
  • O carácter sanguinário das diversas classes (o celebrar e festejar a morte);
  • A procura de emoções fortes que preencham o vazio da existência;
  • A futilidade, a vaidade e os jogos de sedução femininos (a preocupação com as toilettes, os sinaizinhos no rosto, as borbulhas encobertas...).
          1.5. Os baptizados e os funerais régios:
  • O luxo e a ostentação;
  •  A vida e a morte como espectáculos.
          1.6. A elevação a cardeal do inquisidor D. Nuno da Cunha: o luxo e a ostentação.

          1.7. A vida conventual:
  • A libertinagem e a devassidão;
  • O desrespeito pelas normas religiosas (por exemplo, o celibato).
          1.8. As touradas:
  • A descrição pormenorizada do evento:
» a organização e a decoração da praça, profusa e ricamente enfeitada com palanques, mastros com bandeirinhas, colunas com frisos e cornijas douradas, grandes figuras pintadas de várias cores e ouro, um mastro com uma bandeira que exibe a figura de Santo António;
» os espectadores que ocupam as bancadas e os terraços;
» os aguadores, que molham a praça;
» os reis e as altezas, que assistem à tourada a partir das janelas do paço;
» os cavalos, bem aparelhados;
» o sangue e a morte como forma de espectáculo e divertimento (a tortura dos touros, o sangue, as feridas, as «tripas»);
» o delírio e a excitação (mais uma vez!) de homens e mulhres perante aquele espectáculo de sangue, sofrimento e morte;
» a prática das mantas de fogo sobre os touros, que estralejam à medida que os touros correm o terreiro, enlouquecidos pela dor;
» o espectáculo de tortura dos coelhos e das pombas, encerrados em bonecos de barro pintados, contra os quais investem os touros.
          1.9. A procissão do Corpo de Deus:
  • Os preparativos para a procissão, que ocorrem de véspera:
» o Terreiro do Paço: as figuras, a coluna, os medalhões e as pirâmides;
» as rudas toldadas: os mastros decorados com seda e ouro e medalhões douradas com o Sacramento, o brasão do patriarca e os brasões do Senado da Câmara; a Rua Nova com as colunas dos arcos revestidas de sedas e de damascos;
» as janelas decoradas com cortinas e sanefas de damasco carmesim e franjas douradas;
» a vigilância dos escravos pretos e dos quadrilheiros para evitar o assalto a tanta riqueza;
» a pavimentação das ruas entre o Rossio e o Terreiro do Paço com areia vermelha e ervas;
» a exposição e o despique das damas às janelas com penteados artísticos e excessiva maquilhagem, e a consequente produção de glosas em sua honra;
» as brincadeiras dos rapazes pelas ruas e os «solaus e chocolate» dentro das casas, durante a noite.
  • A procissão:
» o desfile das bandeiras dos ofícios, rica e excessivamente decoradas (damasco brocado, bordaduras de ouro, cordões de ouro e seda, etc.);
» as fanfarras de trombetas e tambores;
» a representação de S. Jorge;
» o desfile das diferentes irmandades, distinguíveis pelas cores das capas;
» o desfile das comunidades religiosas;
» a multidão do clero das paróquias;
» a participção do rei, que segura uma vara do pálio;
» os pensamentos do patriarca e os pensamentos do rei revelados pelo narrador.
  • O simbolismo da procissão:
» O luxo e a ostentação;
» A sobreposição do profano ao sagrado;
» A libertinagem e a vida dissoluta do rei;
» A histeria e o fanatismo (as pessoas batem em si próprias e aos outros).

          1.10. O cortejo de casamento:
  • O casamento da realeza;
  • A vida feminina;
  • O luxo e a ostentação desmedidos;
  • O contraste desse luxo com a fome e a miséria do povo, que luta pela sobrevivência e se entrega a comportamentos imorais;
  • O estado deplorável dos caminhos. 
          Em suma, Lisboa é apresentada como um espaço infecto, alimentado pelo ódio (aos judeus e aos cristãos-novos), pela corrupção moral dos religiosos, pelo poder repressivo e hipócrita do Santo Ofício e pelo poder autocrático do rei.


2. MAFRA

          «... e a vila (...) é Mafra, que dizem os eruditos ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados...» (pág. 306).

          2.1. O recrutamento dos trabalahores para os trabalhos do convento:
  • a servidão e a escravatura populares (os homens são obrigados, na maioria dos casos à força de armas, ou voluntariamente, na mira de um salário e de alimentação certa, a abandonar as suas casas e a construir o convento, vivendo em barracões, executando um trabalho desmdido e roídos de doenças venéreas):
» as condições precárias e sub-humanas de vida;
» o recrutamento à força, com armas e violência física;
» os abusos de poder;
» o desrespeito pela dignidade das mulheres e dos filhos abandonados;
» os procedimentos próprios da escravatura;
» a fome, o frio e a miséria;
» a humilhação e a desumanização do homem.

          2.2. O início da construção do convento:
  • as condições de vida e de trabalha infra-humanas;
  • o trabalho incessante e mecanizado;
  • a analogia entre o trabalho do homem e da formiga, enquanto denúncia da desumanização e da violência do trabalho a que aquele está sujeito.
          2.3.  As condições de vida e de alojamento
  • a precariedade e a falta de higiene no alojamento, onde são visíveis os parasitas e a falta de arejamento do espaço;
  • a miséria dos trabalhadores e dos soldados;
  • a violência de comportamentos;
  • a prostituição;
  • os hábitos insalubres: as doenças sexualmente transmissíveis;
  • a falta de segurança no trabalho.
          2.4. As condições laborais:
  • os homens são apresentados como bestas de carga;
  • o sacrifício dos animais;
  • a elevação dos trabalhadores à categoria de heróis, através da descrição do martírio e do sacrifício a que estão sujeitos durante os trabalhos de construção do convento e que está simbolizada no episódio da epopeia da pedra (pp. 247-274).
          2.5. Os momentos de lazer:

          Em Mafra, escasseiam os momentos de lazer, facto que contrasta com o que se passa em Lisboa, onde, como vimos, abundam os espactáculos (além dos acima descritos - touradas, por exemplo -, temos os pátios de co´médias, as cantarinas, os representantes e a ópera - pp. 226-273). Aos trabalhores do convento restam-lhes o «fait-divers» e o contar de histórias ao serão como forma de evasão, nomeadamente a história de Manuel Milho.

          2.6. A sagração da basílica:
  • a ostentação e o luxo com a presença do rei, do infante D. António, do patriarca, dos fidalgos, dos criados da casa real, dos coches e dos cavalos sumptuosos;
  • a mobilização passiva do povo, estimada em setenta a oitenta mil pessoas;
  • o ritual excessivamente hierarquizado;
  • o deslumbramento dos participantes;
  • a extensão inusitada dos oito dias de festa.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Povo

          A personagem colectiva povo é uma personagem anónima, concretamente a gente que construiu o convento de Mafra, isto é, que trabalhou e sofreu às mãos do rei e dos seus desejos megalómanos, de cumprir a promessa, em suma, da sua vaidade.
          O povo, humilde e trabalhador, vive na mais completa miséria, física e moral, daí que não se estranhe o facto de o narrador o elogiar e enaltacer constantemente, procurando, desse modo, tirá-lo do anonimato e individualizá-lo em várias personagens (por exemplo, atribui-lhe um nome para cada letra do alfabeto - pág. 242). O episódio da Epopeia da Pedra simboliza, precisamente, os trabalhos e as dificuldades que teve de enfrenter na construção do convento.
          Assim, o povo constitui o verdadeiro herói da obra, um herói diferente, no entanto, do habitual, porque deficiente, feio, rude e às vezes violento: “(…) não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades…” (pág. 242).
          No fundo, o que o narrador pretende ao inaugurar este nova visão do povo é apresentar uma interpretação diversa da que a História registou, ou seja, destacar os operários (cerca de 40 000) que, humildemente, sofreram e procuraram sobreviver à construção do convento: “Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixem, com perdão da anacrónica voz…” (pág. 257). Dito de outra forma, pretende-se que os verdadeiros heróis que estiveram na génese dos grandes feitos e das grandes obras não sejam, ao contrário do que registam os livros de História, os reis e os líderes, mas aqueles que, com o seu esforço, a sua dedicação e a sua coragem, foram o braço indispensável à realização desses feitos e dessas obras.

sábado, 5 de junho de 2010

Princesa Maria Bárbara

          A princesa, com "dezassete anos feitos", prepara-se para se casar com Fernando de Castela.
          Tem "cara de lua cheia" e a pele "bexigosa", mas é "boa rapariga" e "... musical a quanto pode chegar uma princesa..." (p. 297).
          Nascida a 4 de Dezembro de 1711 em Lisboa, D. Maria Teresa Bárbara de Bragança era filha de D. Maria Ana de Áustria e de D. João V. Tornou-se rainha de Espanha após o seu casamento, em Lisboa, por procuração, em 1729, com o futuro Fernando VI, na altura príncipe das Astúrias.
          D. Maria Bárbara desempenhou um papel fundamental nas boas relações que o seu marido manteve com Portugal. Um exemplo da influência exercida por ela foi o Tratado de Madrid de 1750, que terminou com a discórdia sobre a pertença dos territórios da América do Sul a Portugal ou a Espanha.
          Muito querida no seu país de adopção, era, segundo os cronistas, não muito bela, mas possuía um carácter encantador. O dispendioso palácio de Vendas Novas foi construído por D. João V de propósito para o séquito de D. Maria Bárbara aquando o seu casamento, tão sumptuoso era o seu enxoval. Dona de grande caridade, cultura e inteligência, foi compositora, aluna de cravo de Domenico Scarlatti, protectora e fomentadora de cantores e da música, favorecedora dos jesuítas. Em 1750, criou o Convento da Salésias Reais.
          Toda a vida teve uma saúde frágil, acabando por falecer em Madrid a 27 de Agosto de 1758, o que desesperou o marido e o levou à reclusão e demência evolutiva.

Fonte: Infopedia

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Mariana Vitória

          Mariana Vitória é uma princesa castelhana, destinada a ser desposada por D. José, o herdeiro da coroa portuguesa. Sobre elas, ficamos apenas a saber que “… gosta de bonecas, adora confeitos, nem admira, está na idade…”.
          D. Mariana Vitória era filha de Filipe V de Espanha. Nasceu em 1718 e faleceu em 1781. Esteve noiva de Luís XV de França, mas o casamento não se concretizou. Em 1727, foi contratado o seu matrimónio com o futuro rei D. José I, no âmbito de uma política de alianças que incluía também a união da princesa portuguesa D. Maria Bárbara a D. Fernando, herdeiro do trono espanhol. Vivendo, de uma maneira geral, alheada dos negócios públicos, D. Mariana Vitória ocupou a regência em 1776-1777, por doença de D. José.




Farewell

Scarlatti

          Scarlatti é o quarto elemento que vem juntar-se ao trio Baltasar, Blimunda e Bartolomeu: à força física de Baltasar, à magia de Blimunda, traduzida na capacidade de recolher vontades, à ciência do padre Bartolomeu de Gusmão, vem unir-se a arte do músico (“Senhor Scarlatti, quando o enfadar o paço, lembre-se deste lugar. Lembrarei, por certo, e se com isso não perturbar o trabalho de Baltasar e Blimunda, trarei para cá um cravo e tocarei para eles e para a passarola, talvez a minha música possa conciliar-se dentro das esferas com esse misterioso elemento…” - pp. 170-171).
          Assim sendo, tratando-se do quarto elemento, Scarlatti associa-se ao simbolismo do n.º 4, o número da terra, dos pontos cardeais, das fases da lua, das estações do ano, das etapas da vida humana, representando, portanto, a plenitude, a totalidade. Com efeito, estas quatro personagens remetem para a ideia de deificação do Homem, uma vez que são capazes de se libertar da materialidade.
          Por outro lado, a sua música assume grande significado em determinados passos do romance. Por exemplo, é ela que cura Blimunda, permitindo-lhe prosseguir a sua tarefa de recolher as vontades que permitirão o voo da passarola. No entanto, não se infira daqui a constituição de um «quarteto» no que toca ao projecto da passarola, que Scarlatti não segue até ao seu desenlace, visto que apenas assiste à sua partida. Curioso é o facto de o seu cravo repousar, escondido, no fundo de um poço (pág. 198), enquanto a passarola permanecerá, longo tempo, escondida na serra de Monte Junto.

          Nas palavras de Adelina Moura, «Scarlatti personifica a arte (pp. 162-163) que, aliada ao sonho, permite a cura de Blimunda (pp. 186-187) e possibilita a conclusão e o voo da passarola (p. 173)».

Blimunda

          Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
          Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descrito diversas vezes - de facto, possui uns olhos misteriosos, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, é às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - pág. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (pág. 103).
          Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro no auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, observar por dentro das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos). Esses seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto, ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que se possa encontrar.
          É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela suas ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").
          O seu único amor é Baltasar, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (pág. 168). Com efeito, apaixonada por Baltasar, mantém com ele uma eterna relação de amor, de cumplicidade e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer; · o amor que vivem é um amor não-cristianizado mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular (“O casamento e a mortalha no céu se talha”), convivendo em harmónica união (“Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais…” – pág. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza um ciclo completo, uma perfeita dinâmica. Talvez por isso nunca tenham tido filhos.

          Por outro lado, é interessante notar que o envelhecimento físico não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos de Baltasar, Blimunda continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento a nível físico que os atingiu, após a peregrinação em busca de “vontades” por Lisboa, levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: “… cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas…” (pág. 181).
          Blimunda, tal como Baltasar, ajuda na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das “duas mil vontades”, princípio mágico que fará voar a passarola; recolha essa feita na procissão do corpo de Deus, porque é uma ocasião em que as almas e os corpos estão debilitados e não são capazes de segurar as vontades. Essa esforço deixou Blimunda doente, “uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele”.
          Com o decorrer· da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XIII, pág. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte, sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (Padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti, Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao olhar de Blimunda e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

          Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e o seu destino foi procurá-lo durante nove anos – durante essa procura acabou por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o próprio marido em defesa da sua mulher: “Do outro lado do convento, num rebaixo (…) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso.” (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequência desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: “… que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar…” (pág. 354). Na sua incansável demanda, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, precisamente o mesmo em que se encontrava António José da Silva, o Judeu, autor de comédias de bonifrates.

Baltasar

          Baltasar Mateus - a primeira das personagens ficcionais deste trabalho - é um soldado recém-chegado da Guerra da Sucessão espanhola (1704 - 1712), natural de Mafra e com 26 anos. Aproveita uma deficiência física - é maneta, em virtude de ter perdido a mão esquerda na aguerra, "estraçalhada por uma bala" -, que provocou a sua expulsão do exército, o que significa que, à semelhança do Bailote de Aparição ou do Antigo Soldado de Felizmente há Luar!, representa todos aqueles que são explorados até ao tutano enquanto saudáveis e que, depois, são desprezados e abandonados quando já não têm utilidade prática. Essa expulsão leva-o a vaguear como pedinte em Évora com o intuito de fazer um gancho que lhe substitua a mão perdida até chegar a Lisboa, onde conhece Blimunda num auto-de-fé.
          O envelhecimento físico que vai manifestando ao longo da obra, à medida que os anos passam, não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Blimunda, sobretudo porque aos seus olhos Baltasar continua o mesmo: “… tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombos, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo…” (p. 326)[1].
          Mais tarde tornar-se-á um dos operários que trabalham na construção do convento como servente ou a fazer carretos com os carros de mão, participando igualmente na construção da passarola, factos que contribuem para o agigantar da sua imagem ao longo do romance, chegando mesmo a atingir uma espécie de divinização: “(…) Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo (…)”; “Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar.” (cap. VI, pág. 68).
          No fundo, Baltasar é apresentado como um marginal, lutando pela sobrevivência e não hesitando em matar, uma espécie de herói pícaro[2]:
  • foi soldado na Guerra de Sucessão espanhola, donde foi expulso por ter ficado mutilado da mão esquerda;
  • sem salário, inicia uma vida aventureira e errante: pede esmola para conseguir ter um gancho de ferro, mata um homem que o quisera roubar e conhece João Elvas, rufia e antigo soldado;
          Além disso, encarna a crítica à inutilidade da guerra, já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios: “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas (…) por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum…” (pág. 36).

[1] O narrador faz aqui uma distinção entre duas perspectivas: a “nossa”, objectiva, externa, que só vê aparências; a de Blimunda, subjectiva, interna, que “vê” mais longe e mais fundo, porque observa com os olhos do amor.

[2] A picaresca caracteriza-se por uma série de peripécias e aventuras vividas por uma personagem (o herói pícaro) da baixa condição social, que serve a vários amos, em toda a espécie de expedientes, esfomeado, errante, com um código de honra muito duvidoso que consiste em safar-se da forma mais airosa possível de toda a sorte de dificuldades, principalmente através da sua astúcia e habilidade pouco escrupulosas.

Relação de Baltasar e Blimunda


Fonte: Lithis

Relação de D. João V e D. Maria Ana Josefa

Fonte: Lithis

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Infante D. Francisco

          D. Francisco é o cunhado da rainha, cujos sonhos eróticos povoa e que lhe deixam o travo amargo do pecado.
          Aproveitando-se da doença do irmão, D. João V, insinua-se junto dela para tentar ascender ao trono.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Espaço físico ou geográfico

          A acção de Memorial do Convento desenrola-se em dois grandes espaços: Lisboa e Mafra, a que se acrescenta o Alentejo, em circunstâncias específicas.

          Lisboa é um macroespaço caracterizado, genericamente, como uma cidade muralhada e com abundância de igrejas («Lisboa derramava-se para fora das muralhas. Via-se o castelo lá no alto, as torres das igrejas dominando a confusão das casas baixas, a massa indistinta das empenas.» - pág. 40), o que denuncia o ambiente profundamente religioso e beato que a domina. Interiormente, é descrita como uma cidade suja [«(...) a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove.» - pág. 128].

          Enquanto macroespaço, integra outros espaços:
  • Mercado de peixe, espaço contrastante com a visão imunda da cidade [«Sete-Sóis atravessou o mercado de peixe. (...) Mas no meio da multidão suja, eram miraculosamente asseados, como se as não tocasse sequer o cheiro do peixe que removiam às mãos cheias...» - pág. 42).

  • Paço: trata-se de um espaço de que não há grandes descrições, ressaltando apenas as atitudes das personagens que o habitam e os factos que lá têm lugar.

  • Terreiro do Paço: é o local onde Baltasar trabalha num açougue, após a sua chegada a Lisboa (pág. 71).

  • Rossio: é o local onde decorrem os autos-de-fé.

  • S. Sebastião da Pedreira: espaço relacionado com a passarola e o seu carácter mítico (pp. 65-67). Na época da construção do convento do convento, era um espaço rural onde existiam várias quintas que integravam palacetes.


  • Abegoaria: constitui o ninho de amor de Baltasar e Blimunda. Da descrição que o narrador dela faz, podemos inferir a simplicidade da vida e a pobreza do casal («Num canto da abegoaria desenrolaram a enxerga e a esteira, aos pés dela encostaram o escano, fronteira a arca, como os limites de um novo território, raia traçada no chão e em panos levantada, suspensos estes por um arame para que isto seja de facto uma casa...» - pág. 88). Por outro lado, aí se vai construindo a passarola.
          O outro espaço é o de Mafra, o segundo macroespaço (pp. 110-111), pouco descrito. É aí que milhares de homens, em condições infra-humanas, vão construindo, ao longo de décadas, o convento, muitos deles perdendo lá a própria vida («... o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste qu o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno...» - pág. 117). Nesta vila, destaca-se outro espaço: o alto da Vela, local escolhido por D. João V para edificar o convento e que deu lugar à chamada vila nova, à volta do edifício. Nas imediações da obra, surge a Ilha da Madeira, onde começara por se alojar dez mil trabalhadores, ascendendo, posteriormente, a quarenta mil.

          Um terceiro espaço contemplado é o Alentejo, um lugar povoado por mendigos e salteadores. Esta zona do reino é percorrida por Baltasar aquando do seu regresso da Guerra da Sucessão e, mais tarde, pelo cortejo real, que vai de Lisboa a Elvas, por ocasião dos príncipes D. Maria Bárbara e D. José com os príncipes espanhóis. Nestas ocasiões, realçam-se a miséria e a penúria de quem aí habita, bem como os caminhos de lama e de pobreza.

          Outros espaços referenciados são Pêro Pinheiro, local de onde é originária a pedra, e a Serra do Barregudo, lugar onde a passarola pousou e esteve escondida e donde partiu para a derradeira e fatal viagem de Baltasar.

Dia Mundial da Criança



Texto: «Não tenho tempo»

Autoria: Neimar de Barros

Locução: Marcos Durães


Letra
Sabe. meu filho,
Até hoje não tive tempo para brincar com você.
Arranjei tempo para tudo,
Menos para ver você crescer.
Nunca joguei dominó, dama, xadrez ou batalha naval com você.
Percebo que você me rodeia,
Mas sabe, sou muito importante e não tenho tempo...
Sou importante para números, convites-sociais,
Uma série de compromissos inadiáveis...
E largar tudo isso para sentar no chão com você...
Não, não tenho tempo !
Um dia você veio com o caderno da escola para o meu lado,
Não liguei, continuei lendo jornal.
Afinal, os problemas internacionais
São mais sérios que os da minha casa.
Nunca vi seu boletim nem sei quem é sua professora,
Não sei nem qual foi sua primeira palavra,
Também, você entende... não tenho tempo...
De que adianta saber as mínimas coisas de você
Se eu tenho outras grandes coisas a saber?
Puxa, como você cresceu!
Você já passou da minha cintura. Está alto!
Eu não havia reparado isso.
Aliás, não reparo quase nada, minha vida é corrida,
E quando tenho tempo, prefiro usá-lo lá fora.
E se uso aqui, perco-me calado diante da TV,
Porque a TV é importante e me informa muito...
Sabe, meu filho...
A última vez que tive tempo para você, foi numa noite de amor,
Com sua mãe!
Sei que você se queixa,
Que você sente falta de uma palavra,
De uma pergunta minha,
De um corre-corre,
De um chute na sua bola.
Mas eu não tenho tempo...
Sei que você sente falta do abraço e do riso,
Do andar-a-pé até a padaria para comprar guaraná,
Do andar-a-pé até o jornaleiro para comprar "Pato Donald",
Mas sabe, há quanto tempo não ando a pé na rua?
Não tenho tempo...
Mas você entende, sou um homem importante,
Tenho que dar atenção a muita gente,
Dependo delas... Filho, você não entende de comércio...!
Na realidade, sou um homem sem tempo!
Sei que você fica chateado,
Porque as poucas vezes que falamos é monólogo, só eu falo.
E noventa e nove por cento é bronca:
Quero silêncio, quero sossego!
E você tem a péssima mania de vir correndo sobre a gente,
Você tem mania de querer pular nos braços dos outros...
Filho, não tenho tempo para abraçá-lo,
Não tenho tempo para ficar com papo-furado com criança.
Filho,
O que você entende de computador, comunicação, cibernética,
Racionalismo?
Você sabe quem é Marcuse, Mac Luan?
Como é que vou parar para conversar com você?
Sabe filho,
Não tenho tempo, mas o pior de tudo,
O pior de tudo é que...
Se você morresse agora, já, neste instante,
Eu ficaria com um peso na consciência
Porque até hoje
Não arrumei tempo para brincar com você,
E na outra vida, por certo,
Deus não terá tempo de me deixar, pelo menos , vê-lo!