terça-feira, 11 de maio de 2010

Postal dos Correios - Versão II

Piscator

          Piscator foi um actor e encenador, portanto um homem do teatro, que trabalhou com Brecht e que esteve na origem da revolução dramatúrgica encetada por este último.
          Piscator considerava que uma peça de teatro serve para que se compreenda o mundo e a história e que o público deve manter-se afastado da acção, não se deixando encantar ou enfeitiçar por ela. Além disso, defendia encenações com poucos recursos técnicos, mas recorrendo a linguagens muito diversificadas. Para ele, o teatro era um veículo de actuação, de intervenção, de educação, muito próximo do teatro épico posteriormente teorizado por Bertold Brecht.

Osborne

          Logo a seguir à dedicatória e antes da apresentação das personagens, encontramos um excerto de uma peça de John Osborne, dramaturgo inglês dos anos 50 e 60 que se caracteriza por um estilo muito crítico relativamente aos valores sociais mais tradicionais.
          A referida citação foi retirada de uma peça do dramaturgo, televisionada em 1960.
          O seu teatro é caracterizado pelo enquadramento individual do herói num contexto de época, reflectindo um drama de consciência. Ora, um dos problemas focados por Osborne é o do confronto do liberalismo, proclamado por uma voz individual, e do tradicionalismo em vigor numa sociedade ultrapassada, o qual pode ser encontrado também na peça de Sttau Monteiro. De facto, nesta, um indivíduo, Gomes Freire, que preconiza o futuro, o progresso, é marginalizado e perseguido por uma ordem inquestionável, a do regime figurado nas personagens Beresford, D. Miguel e Principal Sousa. Por outro lado, se Osborne pretende atingir criticamente a sociedade inglesa da sua época, nomeadamente a monarquia, Sttau procura reflectir sobre o silenciamento, levado a cabo pelo regime autoritário de Salazar, de uma voz de protesto e inconformismo: a do general Humberto Delgado.
          Tal como em Osborne, vamos encontrar em Sttau tiradas monologais (por exemplo, de Manuel e de Matilde) em que toda a riqueza interior das personagens surge desnudada perante o olhar do leitor ou do público.
          As personagens do dramaturgo inglês são figuras sós, excluídas, que falam e não são compreendidas pelos que as rodeiam. No entanto, não se deixam vergar pela ordem instituída a que se opõem, tal como sucede com Gomes Freire, Matilde e Sousa Falcão, verdadeiros rebeldes perante um poder instituído, mas não revoltosos ou revolucionários.
          Holyoake, a personagem de Osborne que consta do excerto transcrito na obra de Sttau Monteiro, defende o direito à opinião («What's the morality of a law wich prohibits the free publication of an opinion?») e auto-proclama-se um homem honesto sobre o qual impende uma única acusação: ir contra a opinião vigente («... I'm here for having been more honest than the law happens to allow.»; «But these weapons are denied only to those who attack the prevailing opinion.»). Assim sendo, esta figura pode ser entendida como uma outra versão de Gomes Freire, o defensor de uma liberdade que o poder autocrático não reconhece e que acaba por ser vítima desse mesmo valor que defende e que o condena.

Brecht

          A peça Felizmente há Luar! é um drama narrativo que surge na linha do teatro épico de Bertold Brecht, dramaturgo de origem alemã, nascido na Bavária em 1898 e falecido em 1956, um dos reformadores do teatro do século XX. Dentre as suas obras, as mais conhecidas entre nós são as peças Ópera dos Três Vinténs (1928), Mãe Coragem e seus Filhos (1941) e O Círculo de Giz Caucasiano (1949). Além de escritor, Brecht foi encenador e director da Companhia Berliner Ensemble. A temática recorrente dos seus textos gira em torno da luta dos oprimidos.

          Os fundamentos do teatro épico são os seguintes:
a. o teatro épico é um teatro didáctico;
b. tem uma função ideológica precisa;
c. designa-se épico no sentido em que é sobretudo narrativo, processando-se essencialmente pela argumentação, em detrimento da sugestão;
d. o teatro deve ser um instrumento de construção e transformação social, dado que deve intervir activamente no curso dos factos históricso e constituir-se como meio para mudar uma época, a partir de uma abordagem racional por parte do espectador;
e. a representação teatral deve tomar como ponto de partida a realidade envolvente, denunciando as injustiças sociais e procurando levar o espectador a reflectir, a reagir criticamente, a tomar uma posição crítica sobre essa realidade - estamos na presença de um novo espectador: crítico e interventivo, que toma partido;
f. ao contrário do drama aristotélico, o espectador do teatro épico não se deve identificar oue emocionar com a realidade que lhe é mostrada através da representação ou com o herói da peça;
g. de facto, o drama segundo Brecht já não se destina a criar o terror (fobos) e a piedade (eleos) no espectador.
          O conceito fundamental do teatro épico é, no entanto, o da distanciação histórica, cujo objectivo passa pela promoção da reflexão do espectador sobre uma realidade que lhe é próxima, recorrendo para isso à encenação de factos históricos.
          Através de uma fábula, isto é, através do retrato de um acontecimento passado que apresenta pontos de contacto com o presente, pretende-se levar o espectador a olhar o mundo de forma lúcida e crítica. Ou seja, a peça deve abordar um tema histórico que funcione como metáfora (na peça de Sttau Monteiro, a realidade representada - a prisão e condenação do general Gomes Freire no século XIX - funciona como metáfora da realidade portuguesa do tempo da escrita - 1961).
          A distanciação possibilita um olhar crítico e uma tomada de posição do espectador perante a realidade que lhe é mostrada e, consequentemente, perante a realidade em que vive. Confrontado com situações de injustiça e de opressão social, ele toma consciência de que a realidade circundante não é imutável e que é capaz de a alterar.
          Por outro lado, as personagens devem distanciar-se do que representam, permitindo que o espectador compreenda que estão ao serviço de uma ideia, de uma denúncia, agindo de modo a não contribuir para que o espectador as confunda com o que representam. Dito de outra forma, a personagem deve ser entendida como porta-voz de uma consciência, cabendo-lhe fazer com que o público não se identifique consigo, antes compreenda que ela é uma máscara, um processo de denúncia.
          Por sua vez, o cenário é muito pouco caracterizado. Como verificamos no Felizmente há Luar!, apenas são referenciados alguns elementos que nos remetem para determinados espaços sociais (por exemplo, as três cadeiras «pesadas e ricas com aparência de trono» - pág. 47 - ilustram as três faces do poder; o «caixote» no qual se sentam uma «velha» - pág. 16 - caracteriza os oprimidos).
          O gestus promove também a distanciação na medida em que abarca um conjunto de atitudes que aponta para a relação do indivíduo com o mundo que o rodeia, podendo servir para indicar um posicionamento de classe (na peça, o 1.º Popular ora macaqueia os modos de um fidalgo, ora «desfaz o gesto com violência» - pág. 17 -, para denunciar que ali ninguém tem relógio, compreendendo-se que assim é porque as condições socioeconómicas não o permitem).
          Quanto à iluminação, contribui para o efeito da distanciação através da incidência ou não, em determinadas personagens, da luz, pretendendo, deste modo, o autor realçar as suas opções ideológicas.
          Os efeitos de som - por exemplo, o ruído dos tambores - contribuem para a distanciação porque apresentam uma função intimidatória, opressora dos populares e de todos os que se opõem ao Poder: «Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído dos tambores» (pág. 17).

          Por último, nota para o facto de a influência de Brecht se reflectir sobretudo no primeiro parágrafo, pois o segundo aflora essencialmente as emoções de Matilde resultantes da prisão do marido e do seu percurso em busca da sua salvação, apresentando uma natureza dramática.