segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Electric Dreams

A década de 80 foi um período marcante para quem a viveu, sobretudo para quem nela fez a transição da infância para a adolescência e, posteriormente, para o estado semi-adulto.

À semelhança dos referentes aos Tears for Fears, ou aos Buggles, este vídeo de Electric Dreams, música da autoria de Giorgio Moroder e cantado por Phil Oakley, serviu de pano de fundo de um filme qualquer.

Preencheu algumas noites de sonhos...



O Andaime

Fernando Pessoa intitulou o poema de "O Andaime", aparecendo a mesma palavra na última estrofe da composição. Andaime é um vocábulo de origem árabe que os dicionários descrevem como uma armação de madeira ou ferro de que se servem os pedreiros para construir um edifício, sendo desmontada após a construção. É também utilizado para restauro de paredes de edifícios arruinados. Porquê o andaime nesta composição? Diz António Quadros que há sempre na poesia de Pessoa «um trilho para as alturas, uma temática de levitação para além de tudo» (Quadros, 1987: 62). Palavras como sol, sobe e o próprio andaime são disso testemunhas no poema em análise.

O andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às alturas, as paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta. Contrapõe-se a altura do sol e do andaime à planura do rio e do mar. a «casa por fabricar» é o que nunca chegou a ser; o andaime as esperanças irrealizáveis, o projecto inconcluso, a ilusão que se revelou numa mentira. O andaime, afinal, não serviu para construir a casa; era inútil como a vida e seus anseios.

A casa, na simbologia geral, é o centro do mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de cada homem. Nesta composição, o poeta sente-se vazio, pois a casa não chegou a ser edificada. O seu interior, a sua alma, é um vácuo enorme rodeado por um andaime inútil.

Fernando Pessoa tem uma imaginação aquática por excelência. É quase obsessivo o tema da água na sua obra. Lembremo-nos das odes de Álvaro de Campos, um engenheiro naval, e da Mensagem. No poema em análise temos o rio, as ondas, as águas lentas e mansas, o mar.

O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (cf. Chevalier, 1982: 449). O poeta recorda o seu passado olhando as ondas do rio. Elas lembram-lhe a vida «vivida em vão». O «correr vazio» do rio é como a própria vida. O poeta está na margem sossegado e não encontra nenhuma razão para explicar o seu sossego. Antes pelo contrário, deveria estar agitado, inconformado com aquilo em que se tornou. Olha com indiferença as ondas, ouvindo o «som morto das águas». Tudo passa, tudo vai, como a corrente do rio. A velha ideia heraclitiana está aqui bem presente. No fragmento 12 da edição de Diels, diz Heraclito: «ceux qui entrent dans les mêsmes fleuves reçoivent le courant d'autres et d'autres eaux et les âmes s'exhalent des substance humides».

As ondas indicam uma ruptura com a vida habitual, uma mudança nas ideias, atitudes, nos comportamentos do sujeito (Chevalier, 1982: 450). O poeta de "O Andaime" descreve-as tão leves que nem são «ondas sequer». O corte entre o passado e a tomada de consciência no presente é radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano colossal.

As águas lentas e mansas remetem-nos para a obra de Bachelard, L'Eau et les Rêves. Diz Bachelard que a água leva «au loin, l'eau passe comme les jours» (Bachelard: 125). «Elle este une substance pleine de réminiscenses et de rêveries divinatrices» (Ibidem: 122). É a mestra da linguagem fluida, da linguagem sem choques, contínua, da linguagem que abranda o ritmo, que transforma em matéria uniforme os ritmos diferentes (cf. Ibidem: 250). Paul Claudel dizia que tudo o que o coração deseja se pode reduzir à figura da água.

As águas calmas e lentas simbolizam o desejo da morte: «pour certaines âmes, l'eau tient vraiment la mort dans sa substance. Elle comunique une rêverie où l'horreur est lente et tranquile» (Bachelard: 122; cf. Ibidem: 66). As águas mansas funcionam como um convite à morte. Para Heraclito, a morte era a própria água. É expressivo o uso do adjectivo morto no poema de Pessoa, associado ao som das águas e ao eu do poeta.

O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa. Aí se nasce e aí se morre. É a encarnação da Grande Mãe, de que fala Gilbert Durand. O poeta pede às ondas que o levem «Para o olvido do mar». É o desejo do retorno ao seio materno, à indiferenciação. Só o mar é remédio, só as suas águas o podem envolver no esquecimento.

O complexo de Caronte, assim designado por Bachelard, parece reflectir-se neste poema de Fernando Pessoa. O apelo que o poeta faz às ondas para que o levem, lembra um outro de Baudelaire em Les Fleures du Mal: «O mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!» Tudo o que de lento há na morte é marcado pela figura do barqueiro horrível. As ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a transportar a alma do poeta para o mar alto, o túmulo do «olvido». O rio não é o objectivo, mas o meio para alcançar a paz plena do mar e do indefinido.

Na Teogonia de Hesíodo, a água doce estagnada dos rios e a água fecunda e furiosa do oceano antagonizam-se. a paz que o poeta deseja não é o marasmo, a inércia que sobre si se abate quando olha o rio preguiçoso. É a paz espumante do oceano, larga e abrupta numa eterna aventura desigual e única. Talvez do mar renasça um novo ser e a vida recomece, menos ilusória, menos enganadora.

Sabemos que o sonho é um veículo de criação de símbolos. Fernando Pessoa é um sonhador. Ele próprio o diz: «Toda a minha vida foi de passividade e de sonho».

O cepticismo pela vida real transforma-se, no poema "O Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta encara o passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou, a sua vida foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta era o sonho. Como a realidade era dolorosa, efémera, rotineira, refugiava-se na fantasia. O alívio, diz João Mendes, procurava-o «no sonho, não só como evasão da vida angustiada e sem solução; mas porque de facto o sonho se torna mais verdadeiro que a realidade concreta» (Mendes, 1983: 287). Porém, em "O Andaime", o poeta descobre que também o sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho são ambos sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a morte, o «olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo do inconsciente obrigam o poeta a preferir o seio do mar.

A infância é símbolo da inocência e da simplicidade, o estado anterior ao erro. A saudade do tempo de criança é uma constante que atravessa toda a obra de Fernando Pessoa. Sabemos que até aos seis anos ele fora exclusivamente o «menino de sua mãe» e que, a partir daí, tivera de repartir com os seus irmãos recém-chegados essa exclusividade. Tal evento «repercutiu-se-lhe profundamente na alma, tornando-se uma criança e depois um jovem ensimesmado, solitário, introspectivo, melancólico, que procurou sucessivos escapes para a situação ressentida como de abandono e dupla orfandade» (Quadros, 1987: 24). Também no poema "O Andaime" parece delinear-se esta problemática, implicitamente no desejo de retorno ao seio materno atrás explicitado, e na alusão à «bola de criança». Na quintilha terceira, o poeta compara a sua esperança e o seu desejo a uma bola. A bola atirada por uma criança ao alto sobe mais do que a esperança que sente, do que o desejo que tem. As crianças são solícitas. Ele, ao contrário, é morno, quase frio, impotente de vontade. Talvez quando criança fosse mais perseverante nos seus desejos e esperanças.

As recordações afluem-lhe à memória com a correnteza fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as esperanças, os sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos vazios perante o rio que corre. Ressalta um sentimento de fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de queda de um sonho anterior» (Quadros, 1987: 56). As esperanças estão mortas porque já não acredita nelas; mas hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O poeta sente-se um morto, como cadáver que deu à margem do rio.

Mantinha-o uma visão irreal, impossível: «Só no palco era rainha / Despiu-se e o reino acabou». Ele encontrou-se, «Quando estava já perdido». É como chegar atrasado a um encontro que não foi marcado. Tal como um louco, teimava no que não tinha solução. A sensação de loucura é própria de alguém que choca com a realidade e que não a aceita ou a compreende de uma forma desviante. Agora cai em si e vê o engano. Apenas um sonho liga o seu pensamento ao corpo: ser muro de jardim.

A simbologia do muro e do jardim tem a sua importância para a compreensão do poema. O muro simboliza a comunicação cortada, interrompida. Pode servir para defesa, protecção, mas é ao mesmo tempo símbolo de cárcere. O jardim simboliza o paraíso terrestre, celeste ou cósmico. Aparece nos sonhos como a expressão de um desejo puro. O muro de jardim mantém as forças internas que florescem. Não se penetra no jardim senão por uma porta estreita (Cf. Chevalier, 1982: 531-533). Contudo, o poeta fala de um «deserto jardim». Não tem árvores nem canteiros de flores. Está deserto como a sua própria alma. Deste modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o vazio, a ausência da felicidade; o muro o corte, o impedimento de realizar o sonhado. O corpo do poeta é o muro da alma, o guardião, a defesa do que já nada há para guardar. O jardim é a sua alma árida e deserta, sem sonhos, sem vida, sem passado, sem futuro.