quarta-feira, 19 de maio de 2010

Padre Bartolomeu de Gusmão

          O Padre Bartolomeu de Gusmão é uma personagem parcialmente referencial, como o próprio nome, já que a designação de Lourenço não aparece nos livros de História, assim como não são factos históricos a construção da passarola (da qual só é conhecido um desenho) e a viagem de Lisboa até Mafra.
          Ele é, antes de mais, um sonhador: tem o sonho de voar, por isso toda a sua acção se centra na construção da passarola, projecto concretizado na quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. A concretização desse sonho depende da protecção e da amizade de D. João V, o que não consegue impedir a perseguição do Santo Ofício. Não obstante todas as dificuldades que lhe surgem, acaba por construir a passarola e voar, com a ajuda de Baltasar e Blimunda.
          Bartolomeu de Gusmão tem, no início da obra, 26 anos, a mesma idade de Baltasar. Sendo, de facto, em parte, uma personagem referencial, apresenta diversos traços da personagem histórica:
• relação com a corte e as academias: “… e o outro reverendo (…) encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu de Gusmão.” (p. 175);
• a construção da passarola: “Se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço chegar a voar um dia.” (p. 166);
• o doutoramento em Cânones: “Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelido onomástico e forma escrita.” (p. 159);
•as viagens ao Brasil e à Holanda.
          Forma uma tríade com Baltasar e Blimunda (será a coincidência da letra inicial do nome próprio uma mera coincidência?) no que concerne à construção da passarola. Com efeito, estamos perante um verdadeiro trabalho de equipa, pois o sonho pertence aos três, o empenho é colectivo, bem como a glória e a desgraça (“Mas o padre diz que não, que falará a el-rei, por estes dias, far-se-á então a prova da máquina, e, correndo bem tudo, como se espera, para todos haverá glória e proveito, a fama levará a todas as partes do mundo notícia do feito português, com a fama virá a riqueza, O que meu for é de nós três, sem os teus olhos, Blimunda, não haveria passarola, nem sem a tua mão direita e a tua paciência, Baltasar…” (p. 191). Por outro lado, a união e a harmonia reinantes entre eles estão patentes na simbologia do número 3, que exprime a ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Ele sintetiza a triunidade do ser vivo ou resulta da conjunção de 1 e do 2, produto neste caso da união do céu e da terra. No entanto, no que diz respeito à vontade humana, o padre é o mais fraco dos três, pois foge, renegando, de certa forma, a sua obra e tentando destruí-la, enquanto Baltasar e Blimunda lutam até ao fim, enfrentando dogmas, preconceitos e a própria Inquisição.
          Bartolomeu de Gusmão é, pelo exposto, um inventor e um grande orador sacro, desfrutando de uma fama aproximada à do Padre António Vieira.
          Interiormente inquieto em matéria de fé (p. 170), assume uma postura nada dogmática que contrasta com o clero da época e que se espelha nas leituras diversificadas que faz, como se objectivasse alcançar a totalidade do Saber: “Abandonara a leitura consabida dos doutores da Igreja, dos canonistas, das formas variantes escolásticas sobre essência e pessoa, como se a alma já estivesse extenuada de palavras, mas porque o homem é o único homem que fala e lê, quando o ensinam, embora então lhe faltem ainda muitos anos para o homem ascender, examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamento velho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco, pelos judeus chamado Tora, e o Alcorão…” (p. 176). De facto, Bartolomeu de Gusmão interpreta, de forma algo sacrílega, determinados rituais e sacramentos cristãos (basta atentar no baptismo e no casamento de Baltasar e de Blimunda) e, por outro lado, enquanto cientista, ignora o fanatismo religioso da época e chega mesmo a questionar os dogmas eclesiásticos. Daqui resulta a construção de uma personagem complexa e algo excêntrica; é um ser fragmentário e atormentado, segundo as palavras do narrador: “Três se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico (…), se o inventor da máquina de voar (…) se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem…” (p. 176).
          É um homem culto, sábio e viajado (Brasil, Holanda...). A sua obsessão de voar revelam o seu saber e o seu orgulho, factos que o tornam um alvo apetecível da Inquisição. Além disso, forma uma «Santíssima Trindade» com Baltasar e Blimunda, duas personagens que representam a transgressão das regras religiosas, para poder concretizar o seu sonho de voar: Bartolomeu representa o saber, Blimunda a magia e Baltasar o saber prático. A este trio, junta-se Scarlatti e a sua música, que representa o quarto elemento - a Arte - indispensável ao voo da passarola.
          É uma das poucas personagens que se relaciona com dois mundos, o da corte e o do povo, que reagem diversamente ao seu sonho e às suas ideias – aquela olha-o com desconfiança (“Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo…”, p. 64); o povo, encarnado nas figuras de Baltasar e Blimunda, acolhe e participa naturalmente no seu projecto (“A Baltasar convencia-o o desenho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê, por ter a ave a forma de ave, não há nada mais simples…” (p. 68).
          As intrigas e difamações da corte, juntamente com o medo da Inquisição, que está no seu encalço, acabam por o obrigar a fugir para Espanha, onde morre, louco, em Toledo, a 19 de Novembro.

D. Maria Ana Josefa

          D. Maria Ana, de origem austríaca (veio da Áustria há dois anos), tornou-se rainha de Portugal ao casar com D. João V.
          A rainha é apresentada como uma personagem muito religiosa, beata até, submissa e medrosa. Por outro lado, a sua relação matrimonail deixa-a extremamente insatisfeita, quer amorosa quer sexualmente, desempenhando sempre um papel passivo. Os reis não dormem juntos, mantêm relações sexuais duas vezes por semana apenas para tentar conceber um herdeiro, não comunicam. Essa insatisfação leva-a a ter sonhos eróticos com o cunhado, o infante D. Francisco, facto que lhe acarreta novos problemas, pois vive atormentada pela consciência de estar em pecado, já que considera os sonhos um «acto» vergonhoso e criminoso, um pecado que atenta contra a castidade. Consequentemente, procura superar os remorsos e o sentimento de culpa, cumprindo penitência, rezando e peregrinando pelas igrejas, em missas e novenas intermináveis. Como afirma o narrador, D. Maria Ana é somente a «devota parideira que veio ao mundo só para isso».
          Vive num ambiente de repressão, constantemente vigiada pela família à distância, com poucas ocupações e temas de conversas com as aias - ambiente esse de que procura fugir através do sonho - e cheia de saudades de casa.

D. João V

          O retrato do Rei é feito de forma indirecta, através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos, dos encontros com a madre Paula, das idas à câmara da Rainha, das conversas com o Tesoureiro.
          Filho de D. Pedro e da rainha Maria Sofia de Neuburg, foi proclamado rei em 1 de Janeiro de 1707, tendo, no ano seguinte, casado com a princepa Maria Ana Josefa de Áustria, de quem teve seis filhos, a somar aos inúmeros bastardos que semeou pelo reino.
          Preocupado com a ausência de descendentes legítimos e influenciado pelo poder da Igreja católica, faz a promessa de construir um convento em Mafra se, no prazo de um ano, a rainha gerar um descendente. A promessa é cumprida após o nascimento da princesa Maria Bárbara.
          É infiel à rainha, adúltero, pois mantém inúmeras relações extra-conjugais, das quais resultaram os referidos filhos bastardos. A sua relação com ela é desprovida de qualquer afectividade, consiste no simples cumprimento de um dever. Mais: as páginas inciais descrevem-no-las, de forma caricata e sarcástica: repletas de formalismos, sem espontaneidade, cumplicidade, amor ou prazer. Não podemos esquecer-nos que o casamento entre ambos foi «arranjado», que os noivos mal se conheciam e que se uniram sem qualquer traço de amor que os aproximasse.
          É extremamente vaidoso e egocêntrico, por isso compraz-se na contemplação do número ordinal romano V por ser comum ao Papa e a si próprio (cap. I); é servido por inúmeros criados (p. 13); exige que a data de sagração do convento seja um domingo que coincida com o aniversário do rei, daí que ocorra a 22 de Outubro de 1730; chega mesmo a comparar-se a Deus. Além de vaidoso, é megalómano, governado apenas para satisfazer os seus caprichos, sonhos e ambições, desprezando povo miserável e oprimido, que submete a enormes sacrifícios para que aqueles se concretizem. Apesar da miséria que atinge o reino, nomeadamente os mais fracos e socialmente inferiores, o rei tem momentos de desperdíxcio e de ostentação perdulária, por exemplo quando lança moedas ao povo durante os cortejos reais.
        A questão da infertilidade do rei e da rainha traduz a mentalidade machista da época: "Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres, sim, por isso são repudiadas tantas vezes [...], porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante." (cap. I).
          Muito jovem (ainda não fez 22 anos no início da obra), é um rei cuja reinado se estende de 1706 a 1750, período de grande riqueza ("Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza..."), devido essencialmente ao ouro do Brasil, que permite a realização de grandes obras.
          O narrador não se coíbe, ao longo do romance, de o ridicularizar (por exemplo, a única obra que edifica pelas próprias mãos, nos momentos de lazer, sem qualquer esforço ou risco, é uma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma . p. 165). O narrador aproveita também a figura real para uma reflexão sobre a igualdade entre todos os seres humanos:
» muda com a idade (“É que ao contrário do que geralmente aceita o vulgo ignaro, os reis são tal e qual os homens comuns, crescem, amadurecem, variam-se-lhes os gostos com a idade…” – p. 277);
» adoece como o mais comum dos mortais (“El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, (…) duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor de Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo e quanto temos cá fica…” – p. 112);
» teme a morte;
» por isso e por vaidade, já que seria apenas “o rei que mandou fazer e não o que vê feito…” (p. 289), se precipita na marcação da data de sagração do convento (pp. 288-289).
        É retratado de forma contraditória: por um lado, é um devoto fanático que sacrifica o povo na edificação do convento, que assiste aos autos-de-fé e que utiliza as riquezas do reino para manter as pompas do clero; por outro, é o rei vaidoso que se compara a Deus e luxurioso que desrespeita a Igreja ao relacionar-se sexualmente com freiras, as esposas do Senhor (pp. 155-156), nomeadamente com a Madre Paula.
          No entanto, é o mesmo rei que protege as pesquisas do Padre Bartolomeu de Gusmão e incentiva / promove as artes em Portugal (contrata, por exemplo, artistas como Domenico Scarlatti, este para ensinar música à sua filha). Protege, igualmente, outros projectos (como a passarola) que evidenciam o desejo de progresso, inovação e modernidade.
          Em suma, D. João V representa o tipo do monarca absoluto que anseia que o seu reinado seja marcado por uma obra de estado, grandiosa (a convento de Mafra), isto é, um déspota esclarecido, o que também explica a protecção às artes, como atrás foi referido.