terça-feira, 6 de abril de 2010

Funções das didascálias

À semelhança de qualquer peça de teatro, Felizmente há Luar! apresenta dois textos paralelos: um constituído pelas falas das personagens e outro, mais extenso e minucioso do que é habitual, de carácter descritivo, analítico e, por vezes, judicativo. São as chamadas didascálias ou indicações cénicas.
Nesta peça, o texto secundário - as didascálias - surge sob duas formas: acompanhando e comentando as falas das personagens, constituindo uma espécie de nota de rodapé lateral a essas mesmas falas; embricado no discurso directo, em itálico e entre parêntesis, constituído por indicações menos longas e mais incisivas.
Estamos na presença de um texto extremamente rico e que consubstancia um conjunto de precisosas indicações de trabalho para actores, encenadores, directores de actores e para o próprio leitor.

Em síntese, as didascálias funcionam na peça como:
  • indicação do nome da personagem antes de cada fala;
  • indicação da saída ou entrada de personagens;
  • explicações do autor ("O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se." - pág. 15);
  • referências aos adereços que compõem o espaço cénico;
  • referência à posição das personagens em cena ("Ao dizer isto,  a personagem está quase de costas para os espectadores." - pág. 16);
  • indicação das pausas: "pausa" (pág. 16);
  • caracterização do tom de voz das personagens e suas flexões ("Muda de tom de voz." - pág. 16; "Volta ao seu tom de voz habitual." - pág. 16; "O tom é irónico." - pág. 17);
  • apresentação da dimensão interior das personagens ("O gesto é lento, deliberadamente sarcástico." - pág. 17);
  • ilações que funcionam como informações e como forma de caracterização das personagens ("Fala com entusiasmo. Vê-se que Gomes Freire é o seu herói." - pág. 20);
  • indicações sonoras ou ausência de som ("Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores." - pág. 17; "Este silêncio é pesado." (pág. 21);
  • expressão fisionómica dos actores ("As personagens olham para as mãos e para os lados..." - pág. 21; "O antigo soldado encolhe os ombros." - pág. 22);
  • movimentação cénica das personagens ("Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posição dum senador romano." - pág. 27);
  • sugestão do aspecto exterior das personagens ("Beresford vem fardado. A farda, ainda que regulamentar, não é espaventosa e está um pouco usada." - pág. 41);
  • indicações aos actores ("... Quando passa dum para o outro, os seus gestos devem ser rápidos e enérgicos para que o público compreenda o que se está passando."  - pág. 78);
  • expressão do estado de espírito das personagens e a sua evolução ao longo da cena: tristeza, esperança, medo, desânimo, etc., dos oprimidos; sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação, etc., dos opressores.

Apresentação da obra

1. Características genéricas da peça:
a) Publicação: 1961.
b) Estrutura: a peça é constituída por dois actos e não está dividida em cenas.
c) Particularidades: o paralelismo entre o tempo da acção (séc. XIX) e o tempo da escrita (década de 60 do séc. XX) permite ao autor denunciar indirectamente o totalitarismo e a violência do Estado durante a ditadura de Salazar, através do recurso à distanciação histórica.
d) Tema:
-» explícito: a rebelião e a condenação à morte do General Gomes Freire de Andrade, acusado de conspirar contra o Estado durante o período que antecede o Liberalismo (séc. XIX);
-» implícito: a luta intemporal do ser humano contra a tirania, a opressão e todas as formas de perseguição.
e) Classificação: drama narrativo.
f) Motivo de censura: a peça denucia a hipocrisia da sociedade e defende valores como a liberdade e a justiça social - por isso, foi proibida pela censura da ditadura.
g) Representação:
-» Portugal: apenas após o 25 de Abril, em 1978, no Teatro Nacional;
-» representação anterior, em França, em 1969.
2. O carácter dual da peça
. Em Felizmente há Luar!, a evocações de situações e de personagens do passado serve de pretexto para falar da época em que a peça foi escrita (1961). Através da máscara do passado, o espectador é levado a reflectir sobre a realidade ditatorial:
-» dois tempos:
---» 1817: tempo da história: o Regime Absolutista;
---» 1961: tempo da escrita: o Regime ditatorial de Salazar.
. A estrutura externa é dual:
-» dois actos:
---» Acto I: Apresentação da situação;
---» Acto II: Desenlace trágico.
. O primeiro acto apresenta-se como de natureza épica e o segundo de natureza dramática.
. Elemento estruturador da acção -» Gomes Freire de Andrade:
» é odiado pelos governadores;
» é amado pelo povo;
» origina a sequência de episódios da peça;
» é o símbolo da luta pela Liberdade e pela Justiça;
» atrai a admiração e a esperança do povo oprimido;
» atrai a desconfiança e o ódio dos governadores detentores do poder;
» a sua condenação e a sua execução são o cerne das conversas e condicionam o comportamento das restantes personagens.