segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pólos estruturadores

          A acção de Memorial estrutura-se a partir da construção de três núcleos.

          O primeiro desses núcleos refere-se aos DOMINANTES, aqueles que detêm o poder e dele fazem uso em seu proveito pessoal. É constituído pela realeza e pelo clero, mais concretamente o alto clero, que, sucessivamente, nos é retratado em termos caricaturais (por exemplo, a relação sexual entre os monarcas, ou a cena em que é descrita a fuga precipitada de um frade, apanhado, em plena relação sexual, por um marido enganado).
         
          O segundo núcleo diz respeito ao universo dos DOMINADOS, contemplando quer os operários que trabalham na construção do convento de Mafra - cujo trabalho denodado e sacrificado o narrador não se cansa de exaltar e, em simultâneo, condenar, por resultar da vaidade e da megalomania do rei -, quer as sequências em que sãop denunciados a guerra, a fome, a mendicidade, a prostituição, a criminalidade, a opressão, as desigualdades sociais, etc.

          O último núcelo contempla as situações ALTERNATIVAS, isto é, a construção do convento e a da passarola, bem como a relação amorosa vivida por Baltasar e Blimunda.

Planos

          Em Memorial do Convento, existêm três planos narrativos:

  • o plano da História: o narrador apresenta-nos o Portugal do século XVIII, em pleno período barroco, uma época de excessos e de acentuadas diferenças sociais;
  • o plano da ficção da História:

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Linhas de acção

          Existem, no romance, quatro linhas de acção:

          A acção principal diz respeito à construção do convento de Mafra, uma acção que entrecruza dados históricos e ficcionais e que se situa nas décadas iniciais do século XVIII. A referida edificação resulta da promessa de D. João V feita nesse sentido, caso a rainha concebesse no espaço de um ano.

          Paralelamente, encontramos a história de amor vivida por Baltasar e Blimunda, que constitui, frequentemente, o fio condutor da intriga.

          Existe ainda a acção respeitante à construção da passarola, produto do sonho do padre Bartolomeu de Gusmão, um homem visionário que morre, louco, em Toledo.

          A finalizar temos a acção centrada sobre o povo que edificou o convento e que constitui o verdadeiro herói do romance, esquecido pela História oficial, por isso mesmo objecto de uma tentativa de resgate ao rio do esquecimento por parte do narrador.

Estrutura da acção

          A contracapa do romance, elaborada pelo próprio Saramago, define, desde logo, as suas linhas temáticas: «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.»

In Memorial do Convento

          De facto, a intriga do romance gira à volta da construção do Convento de Mafra - que poderemos designar como acção principal - e das personagens referenciais e/ou ficcionais ligadas a essa construção, mas dela derivam outras linhas de acção, como a relação entre Baltasar e Blimunda, a construção da passarola e a epopeia dos trabalhadores.
          De qualquer forma, costuma apontar-se a existência de três linhas de acção centrais em Memorial do Convento:
  • A construção do Convento de Mafra, resultante da promessa feita por D. João V aos frades franciscanos, segundo a qual aquele seria edificado caso a rainha desse à luz, no prazo de um ano, um herdeiro para o trono português. Esta linha de acção, por outro lado, serve os intuitos críticos do narrador, que aproveita para denunciar o sacrifício e a morte de inúmeros trabalhadores - muitos deles fizeram-no contra a sua vontade - durante a realização das obras. E tudo isto para satisfazer a vaidade do rei.
  • A relação de amor entre Baltasar e Blimunda, personagens que se envolveram quer nas obras do Convento quer na construção da passarola, através, respectivamente, do seu esforço muscular e dos seus poderes mágicos.
  • A construção da passarola pelo padre Bartolomeu de Gusmão, símbolo do desejo eterno do Homem de voar.
          Por outro lado, podemos considerar a existência de quatro momentos na acção do Memorial do Convento:

-» 1.ª parte - Capítulos I a VIII (ano de 1711):
  • A promessa de construção do convento;
  • A gravidez da rainha da futura princesa D. Maria Francisca Bárbara;
  • A apresentação de Baltasar, Blimunda e Bartolomeu de Gusmão;
  • A menção ao projecto da passarola;
  • O nascimento do segundo filho do casal real, o infante D. Pedro, que morrerá com dois anos de idade;
  • O cumprimento da promessa real, com a escolha do local de construção do convento.
-» 2.ª parte - Capítulos IX a XVI (anos de 1713 a 1722):
  • A construção da passarola;
  • A construção do Convento de Mafra, na qual participa a família de Baltasar Mateus;
  • O voo da passarola;
  • A doença de Blimunda e os poderes curativos da música do cravo de Domenico Scarlatti:
  • A tentativa de destruição da passarola pelo seu criador;
  • O desaparecimento do padre Bartolomeu de Gusmão.
-» 3.ª parte - Capítulos XVII a XXIV (anos de 1723 a 1730):
  • Baltasar participa na construção do convento;
  • Morte de Bartolomeu de Gusmão, anunciada por Domenico Scarlatti;
  • Sagração do convento (22 de Outubro de 1730, data do quadragésimo primeiro aniversário do rei);
  • Desaparecimento de Baltasar na passarola.
-» 4.ª parte - Epílogo (capítulo XXV):
  • Errância de Blimunda em busca de Baltasar, que acaba por encontrar, passados nove anos, num auto-de-fé.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Transgressão: Código ficcional

          A nível ficcional, a transgressão ocorre, entre outros, nos seguintes aspectos:
a. A música vence a doença (a música tocada por Scarlatti no seu cravo tem poderes curativos bem evidentes na cura da misteriosa doença que afecta Blimunda após a árdua tarefa de recolher as duas mil vontades necessárias ao voo da passarola).
b. O padre Bartolomeu de Gusmão desafia o poder da Igreja, seguindo o seu sonho e a ciência.
c. A concepção das personagens, nomeadamente as figuras históricas, transgride aquilo que a História nos transmite. Por exemplo, o casal real é apresentado pelo narrador de forma caricatural; ao contrário do que seria de supor, é o casal Baltasar e Blimunda que assume o estatuto de protagonista do romance.
d. O voo da passarola conforme descrito na obra não é verídico. Por outro lado, o voo sai do domínio humano e entra no domínio de Deus, subvertendo as leis do universo.
e. O voo da passarola assenta na conjugação inusitada de saberes: o saber científico de Bartolomeu, associado ao saber artesanal de Baltasar, à magia de Blimunda e à arte de Scarlatti.
f. O narrador assume um estatuto pouco habitual: acompanha a acção, comentando-a e criticando, estabelecendo uma interacção permanente entre passado, presente e futuro.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Transgressão: Código religioso

  • A sumptuosidade que rodeia a edificação do convento (pp. 365-366) vs a simplicidade e a humildade, essência dos valores cristãos;
  • O recrutamento de homens à força para as obras do convento;
  • A construção da passarola vs a proibição de ascender a um plano superior / divino (pág. 198) - os quatro pilares de solidez do projecto: Bartolomeu, Baltasar, Blimunda e Scarlatti;
  • A castidade vs a promiscuidade / as relações sexuais nos conventos / que envolvem frades e freiras;
  • As estátuas dos santos (pág. 344) vs a santidade humana (pág. 342);
  • A missa enquanto espaço de vivência espiritual (pág. 145) vs a missa enquanto espaço de namoros e de encontros clandestinos (pp. 43, 162 e 236);
  • A bênção de Deus vs a benção dos homens (por exemplo, a benção dada por Bartolomeu de Gusmão a Baltasar e Blimunda);
  • O funeral do infante D. Pedro, um espectáculo de pompa e circunstância vs o funeral do sobrinho de Baltasar, manifestação isolada de dor.

Transgressão: Código sexual e amoroso

          A nível amoroso, a transgressão concentra-se na relação de Baltasar e Blimunda, que é vivido à margem das regras sociais da época: não são casados, uniram-se por um ritual de sangue e da colher, vivem uma relação de igualdade de papéis, guiando-se por um estado de perfeição que não é deste mundo.

          A nível sexual, a transgressão atinge o auge no contraste entre a relação carnal que o rei e a rainha mantêm - sexo ritual protocolar para procriação (pp. 11-13, 319-320), profusamente caricaturado pelo narrador - e a relação carnal entre Baltasar e Blimunda, caracterizada por uma entrega sexual permanente e mútua de corpos e de almas sem tabus ou limites, que não os que as próprias personagens «acordam» (pág. 77).
          Outro momento da obra em que a transgressão sexual é bem evidente está relacionada com as propostas que o irmão de D. João V faz à rainha, bem como os sonhos eróticos que atormentam D. Maria Ana Josefa com aquele.
          Por último, o «desfile» que ocorre pelas ruas da cidade por alturas do Entrudo é outro momento de excessos e de transgressão sexual.

Transgressão: Código escrito

          Memorial do Convento é uma obra dominada pela noção de transgressão, visível em vários domínios.

          Um desses domínios é o código escrito. Neste caso, a ideia de transgressão está presente nos seguintes aspectos:
a. a desconstrução e reconstrução das regras da pontuação (vide linguagem):
» a supressão das marcas gráficas do discurso directo (diálogos);
» a substituição dos pontos finais pelas vírgulas, criando uma leitura contínua;
» o uso de maiúsculas no meio da frase para introduzir as falas das personagens;
» etc.
b. a inversão da expressões bíblicas e de provérbios / adágios populares («ainda agora a procissão vai na praça»);
c. a diversidade de registos de língua:
» o registo cuidado;
» o registo familiar;
» o registo popular, nomeadamente o calão («merda», «putas»);
d. os aforismos («Não está o homem livre... com a verdade...»);
e. os jogos de palavras.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Padre Bartolomeu de Gusmão

          O Padre Bartolomeu de Gusmão é uma personagem parcialmente referencial, como o próprio nome, já que a designação de Lourenço não aparece nos livros de História, assim como não são factos históricos a construção da passarola (da qual só é conhecido um desenho) e a viagem de Lisboa até Mafra.
          Ele é, antes de mais, um sonhador: tem o sonho de voar, por isso toda a sua acção se centra na construção da passarola, projecto concretizado na quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. A concretização desse sonho depende da protecção e da amizade de D. João V, o que não consegue impedir a perseguição do Santo Ofício. Não obstante todas as dificuldades que lhe surgem, acaba por construir a passarola e voar, com a ajuda de Baltasar e Blimunda.
          Bartolomeu de Gusmão tem, no início da obra, 26 anos, a mesma idade de Baltasar. Sendo, de facto, em parte, uma personagem referencial, apresenta diversos traços da personagem histórica:
• relação com a corte e as academias: “… e o outro reverendo (…) encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu de Gusmão.” (p. 175);
• a construção da passarola: “Se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço chegar a voar um dia.” (p. 166);
• o doutoramento em Cânones: “Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelido onomástico e forma escrita.” (p. 159);
•as viagens ao Brasil e à Holanda.
          Forma uma tríade com Baltasar e Blimunda (será a coincidência da letra inicial do nome próprio uma mera coincidência?) no que concerne à construção da passarola. Com efeito, estamos perante um verdadeiro trabalho de equipa, pois o sonho pertence aos três, o empenho é colectivo, bem como a glória e a desgraça (“Mas o padre diz que não, que falará a el-rei, por estes dias, far-se-á então a prova da máquina, e, correndo bem tudo, como se espera, para todos haverá glória e proveito, a fama levará a todas as partes do mundo notícia do feito português, com a fama virá a riqueza, O que meu for é de nós três, sem os teus olhos, Blimunda, não haveria passarola, nem sem a tua mão direita e a tua paciência, Baltasar…” (p. 191). Por outro lado, a união e a harmonia reinantes entre eles estão patentes na simbologia do número 3, que exprime a ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Ele sintetiza a triunidade do ser vivo ou resulta da conjunção de 1 e do 2, produto neste caso da união do céu e da terra. No entanto, no que diz respeito à vontade humana, o padre é o mais fraco dos três, pois foge, renegando, de certa forma, a sua obra e tentando destruí-la, enquanto Baltasar e Blimunda lutam até ao fim, enfrentando dogmas, preconceitos e a própria Inquisição.
          Bartolomeu de Gusmão é, pelo exposto, um inventor e um grande orador sacro, desfrutando de uma fama aproximada à do Padre António Vieira.
          Interiormente inquieto em matéria de fé (p. 170), assume uma postura nada dogmática que contrasta com o clero da época e que se espelha nas leituras diversificadas que faz, como se objectivasse alcançar a totalidade do Saber: “Abandonara a leitura consabida dos doutores da Igreja, dos canonistas, das formas variantes escolásticas sobre essência e pessoa, como se a alma já estivesse extenuada de palavras, mas porque o homem é o único homem que fala e lê, quando o ensinam, embora então lhe faltem ainda muitos anos para o homem ascender, examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamento velho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco, pelos judeus chamado Tora, e o Alcorão…” (p. 176). De facto, Bartolomeu de Gusmão interpreta, de forma algo sacrílega, determinados rituais e sacramentos cristãos (basta atentar no baptismo e no casamento de Baltasar e de Blimunda) e, por outro lado, enquanto cientista, ignora o fanatismo religioso da época e chega mesmo a questionar os dogmas eclesiásticos. Daqui resulta a construção de uma personagem complexa e algo excêntrica; é um ser fragmentário e atormentado, segundo as palavras do narrador: “Três se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico (…), se o inventor da máquina de voar (…) se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem…” (p. 176).
          É um homem culto, sábio e viajado (Brasil, Holanda...). A sua obsessão de voar revelam o seu saber e o seu orgulho, factos que o tornam um alvo apetecível da Inquisição. Além disso, forma uma «Santíssima Trindade» com Baltasar e Blimunda, duas personagens que representam a transgressão das regras religiosas, para poder concretizar o seu sonho de voar: Bartolomeu representa o saber, Blimunda a magia e Baltasar o saber prático. A este trio, junta-se Scarlatti e a sua música, que representa o quarto elemento - a Arte - indispensável ao voo da passarola.
          É uma das poucas personagens que se relaciona com dois mundos, o da corte e o do povo, que reagem diversamente ao seu sonho e às suas ideias – aquela olha-o com desconfiança (“Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo…”, p. 64); o povo, encarnado nas figuras de Baltasar e Blimunda, acolhe e participa naturalmente no seu projecto (“A Baltasar convencia-o o desenho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê, por ter a ave a forma de ave, não há nada mais simples…” (p. 68).
          As intrigas e difamações da corte, juntamente com o medo da Inquisição, que está no seu encalço, acabam por o obrigar a fugir para Espanha, onde morre, louco, em Toledo, a 19 de Novembro.

D. Maria Ana Josefa

          D. Maria Ana, de origem austríaca (veio da Áustria há dois anos), tornou-se rainha de Portugal ao casar com D. João V.
          A rainha é apresentada como uma personagem muito religiosa, beata até, submissa e medrosa. Por outro lado, a sua relação matrimonail deixa-a extremamente insatisfeita, quer amorosa quer sexualmente, desempenhando sempre um papel passivo. Os reis não dormem juntos, mantêm relações sexuais duas vezes por semana apenas para tentar conceber um herdeiro, não comunicam. Essa insatisfação leva-a a ter sonhos eróticos com o cunhado, o infante D. Francisco, facto que lhe acarreta novos problemas, pois vive atormentada pela consciência de estar em pecado, já que considera os sonhos um «acto» vergonhoso e criminoso, um pecado que atenta contra a castidade. Consequentemente, procura superar os remorsos e o sentimento de culpa, cumprindo penitência, rezando e peregrinando pelas igrejas, em missas e novenas intermináveis. Como afirma o narrador, D. Maria Ana é somente a «devota parideira que veio ao mundo só para isso».
          Vive num ambiente de repressão, constantemente vigiada pela família à distância, com poucas ocupações e temas de conversas com as aias - ambiente esse de que procura fugir através do sonho - e cheia de saudades de casa.

D. João V

          O retrato do Rei é feito de forma indirecta, através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos, dos encontros com a madre Paula, das idas à câmara da Rainha, das conversas com o Tesoureiro.
          Filho de D. Pedro e da rainha Maria Sofia de Neuburg, foi proclamado rei em 1 de Janeiro de 1707, tendo, no ano seguinte, casado com a princepa Maria Ana Josefa de Áustria, de quem teve seis filhos, a somar aos inúmeros bastardos que semeou pelo reino.
          Preocupado com a ausência de descendentes legítimos e influenciado pelo poder da Igreja católica, faz a promessa de construir um convento em Mafra se, no prazo de um ano, a rainha gerar um descendente. A promessa é cumprida após o nascimento da princesa Maria Bárbara.
          É infiel à rainha, adúltero, pois mantém inúmeras relações extra-conjugais, das quais resultaram os referidos filhos bastardos. A sua relação com ela é desprovida de qualquer afectividade, consiste no simples cumprimento de um dever. Mais: as páginas inciais descrevem-no-las, de forma caricata e sarcástica: repletas de formalismos, sem espontaneidade, cumplicidade, amor ou prazer. Não podemos esquecer-nos que o casamento entre ambos foi «arranjado», que os noivos mal se conheciam e que se uniram sem qualquer traço de amor que os aproximasse.
          É extremamente vaidoso e egocêntrico, por isso compraz-se na contemplação do número ordinal romano V por ser comum ao Papa e a si próprio (cap. I); é servido por inúmeros criados (p. 13); exige que a data de sagração do convento seja um domingo que coincida com o aniversário do rei, daí que ocorra a 22 de Outubro de 1730; chega mesmo a comparar-se a Deus. Além de vaidoso, é megalómano, governado apenas para satisfazer os seus caprichos, sonhos e ambições, desprezando povo miserável e oprimido, que submete a enormes sacrifícios para que aqueles se concretizem. Apesar da miséria que atinge o reino, nomeadamente os mais fracos e socialmente inferiores, o rei tem momentos de desperdíxcio e de ostentação perdulária, por exemplo quando lança moedas ao povo durante os cortejos reais.
        A questão da infertilidade do rei e da rainha traduz a mentalidade machista da época: "Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres, sim, por isso são repudiadas tantas vezes [...], porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante." (cap. I).
          Muito jovem (ainda não fez 22 anos no início da obra), é um rei cuja reinado se estende de 1706 a 1750, período de grande riqueza ("Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza..."), devido essencialmente ao ouro do Brasil, que permite a realização de grandes obras.
          O narrador não se coíbe, ao longo do romance, de o ridicularizar (por exemplo, a única obra que edifica pelas próprias mãos, nos momentos de lazer, sem qualquer esforço ou risco, é uma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma . p. 165). O narrador aproveita também a figura real para uma reflexão sobre a igualdade entre todos os seres humanos:
» muda com a idade (“É que ao contrário do que geralmente aceita o vulgo ignaro, os reis são tal e qual os homens comuns, crescem, amadurecem, variam-se-lhes os gostos com a idade…” – p. 277);
» adoece como o mais comum dos mortais (“El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, (…) duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor de Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo e quanto temos cá fica…” – p. 112);
» teme a morte;
» por isso e por vaidade, já que seria apenas “o rei que mandou fazer e não o que vê feito…” (p. 289), se precipita na marcação da data de sagração do convento (pp. 288-289).
        É retratado de forma contraditória: por um lado, é um devoto fanático que sacrifica o povo na edificação do convento, que assiste aos autos-de-fé e que utiliza as riquezas do reino para manter as pompas do clero; por outro, é o rei vaidoso que se compara a Deus e luxurioso que desrespeita a Igreja ao relacionar-se sexualmente com freiras, as esposas do Senhor (pp. 155-156), nomeadamente com a Madre Paula.
          No entanto, é o mesmo rei que protege as pesquisas do Padre Bartolomeu de Gusmão e incentiva / promove as artes em Portugal (contrata, por exemplo, artistas como Domenico Scarlatti, este para ensinar música à sua filha). Protege, igualmente, outros projectos (como a passarola) que evidenciam o desejo de progresso, inovação e modernidade.
          Em suma, D. João V representa o tipo do monarca absoluto que anseia que o seu reinado seja marcado por uma obra de estado, grandiosa (a convento de Mafra), isto é, um déspota esclarecido, o que também explica a protecção às artes, como atrás foi referido.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Obra

1. Romance

  • Terra do Pecado (1947) - 1.ª obra;
  • Manual de Pintura e Caligrafia (1977);
  • Levantado do Chão (1980);
  • Memorial do Convento (1982);
  • O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984);
  • A Jangada de Pedra (1986);
  • História do Cerco de Lisboa (1989);
  • O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991);
  • Ensaio sobre a Cegueira (1995);
  • Todos os Nomes (1997);
  • A Caverna (2000);
  • O Homem Duplicado (2002);
  • Ensaio sobre a Lucidez (2004);
  • As Intermitências da Morte (2005);
  • A Viagem do Elefante (2008);
  • Caim (2009).
2. Poesia
  • Os Poemas Possíveis (1966);
  • Provavelmente Alegria (1970);
  • O Ano de 1993 (1975).
3. Teatro
  • A Noite (1979);
  • Que Farei com Este Livro? (1980);
  • Dom Giovani, ou o Dissoluto Absolvido (2005).
4. Crónica, Ensaio, Memória
  • Deste Mundo e do Outro (1971);
  • A Bagagem do Viajante (1973);
  • A Estátua e a Pedra (1966);
  • As Pequenas Memórias (2006).
5. Conto
  • Objecto Quase (1978);
  • O Conto da Ilha Desconhecida (1997);
  • A Maior Flor do Mundo (2001).
6. Diário
  • Cadernos de Lanzarote - I (1994);
  • Cadernos de Lanzarote - II (1995);
  • Cadernos de Lanzarote - III (1996);
  • Cadernos de Lanzarote - IV (1997);
  • Cadernos de Lanzarote - V (1998).
7. Viagens
  • Viagem a Portugal (1981).

Biografia

          José Saramago, neto de avós camponeses, nasceu a 16 de Novembro de 1922, na aldeia da Azinhaga, pertencente ao concelho da Golegã.
          Por volta dos dois anos de idade, emigrou para Lisboa, cidade onde decorreu grande parte da sua vida, sem nunca ter cortado as ligações a Azinhaga, onde se deslocou com grande frequência.
          Concluiu o ensino secundário, tendo frequentado o ensino liceal e técnico, mas não prosseguiu os estudos por dificuldades económicas.
          A sua primeira ocupação profissional foi a serralharia mecânica, seguindo-se a de desenhador, a saúde e a previdência social (enquanto simples funcionário), a de tradutor, editor e jornalista.
          Trabalhou durante doze anos numa editora, onde se destacou enquanto director literário e de produção.
          Colaborou com a publicação Seara Nova na qualidade de crítico literário.
          No início da década de 70, esteve integrado na redacção do Diário de Lisboa, onde foi comentador político.
          Entre Abril e Novembro de 1975, foi director-adjunto do Diário de Notícias.
          Profundamente audodidacta, adquiriu um vasto conjunto de saberes (literários, históricos, filosóficos...), apesar da ausência de estudos superiores.
          A partir da segunda metade da década de 70 (1976), passou a viver, exclusivamente, do seu trabalho literário: primeiro como tradutor, depois como autor.
          Fez parte da direcção da Associação Portuguesa de Escritores.
          Entre 1985 e 1994, presidiu à Assembleia-geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
          No que diz respeito a prémios literários, em 1993, foi galardoado com o Prémio Vida Literária, atribuído pela APE, e, em 1995, com o Prémio Camões. Em 1999, foi-lhe atribuído o doutoramento honoris causa pela Universidade de Nottingham (Inglaterra); em 2000, pela Universidade de Santiago do Chile; em 2004, pela Universidade de Coimbra.
          Desde 1985, é comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; a partir de 1991, foi ordenado cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras Francesas.
          Na década de 90, envolveu-se numa polémica com Sousa Lara, membro do governo de Cavaco Silva na área da Cultura, a propósito da candidatura do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, recusada por aquele, baseado em argumentos de cariz religioso.
          Em Fevereiro de 1993, na sequência do seu diferendo com Sousa Lara, passou a ter residência na ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, Espanha, onde ainda hoje reside, na companhia da esposa, de origem espanhola - Pilar del Rio -, uma jornalista.
          Em 1998, foi objecto da maior distinção concedida a um escritor: recebeu o Prémio Nobel da Literatura.
          A sua vasta obra, concebida num período de cerca de trinta anos, encontra-se traduzida em diversas línguas, tendo sido (e continuando a ser) objecto de vários estudos académicos. Actualmente, em Portugal, o romance Memorial do Convento faz parte do leque de obras de leitura obrigatória do programa de Português do décimo segundo ano.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Classificação do romance

1. O conceito de romance histórico

          De acordo com a «definição actual» de romance histórico, este terá tido início no século XIX, com o Romantismo, período literário que valorizava imenso o passado histórico. Romances anteriores, como o Princess de Clives, da autoria de Madame de Lafayette, não cabem nesta classificação, uma vez que não possuem traços essenciais como a factualidade e o rigor histórico.
          Assim, diversos autores consideram que o primeiro romance histórico foi a obra Waverley, saída da pena do escrito britânico, natural de Edimburgo, Sir Walter Scott  (1771-1832), escrito em 1814 e que ve definir as características do género.

               1.1. Características do romance histórico

          O romance histórico procura a recriação histórica, que passa, entre outras coisas, pela criação de ambientes, tradzidos pela chamada «cor local», obtida através de uma série de recursos:

  • evocação, o mais fiel possível, da linguagem da época e dos diferentes frupos sociais;

  • descrição pormenorizada do vestuário e da indumentária das personagens;

  • reconstituição de espaços (cidades, castelos e monumentos), com especial incidência nos aspectos arquitectónicos;

  • recriação de grandes movimentações das personagens (saraus, torneios, manifestações populares), procurando criar a ilusão de fidelidade ao tempo narrador;

  • a presença de personagens referenciais, ao lado de personagens ficcionais, frequentemente os heróis dos romances históricos, na medida em que proporcionam ao autor maior / total liberdade criativa.
          A procura dessa fidelidade ao real histórico leva os escritores a socorrerem-se de fontes diversas: «documentos antigos», «velhos livros», «memórias», etc. Exemplificativa deste aturado trabalho de pesquisa é a polémica que envolveu, há alguns anos, o jornalista-escritor Miguel de Sousa Tavares e o seu romance Equador, acusado de plagiar obras estrangeiras, ao incluir no seu texto extractos das mesmas.

               1.2. O romance histórico português

          O primeiro autor português a cultivar uma forma de romance histórico foi Alexandre Herculano (Lendas e Narrativas; O Bobo; Eurico, o Presbítero...), cujos protagonistas eram geralmente personagens medievais profundamente românticas no que diz respeito ao seu comportamento e forma de sentir e estar. No entanto, é visível a sua preocupação com a veracidade nas constantes referências às fontes, pergaminhos ou manuscritos consultados.

          Outro autor a merecer destaque é Camilo Castelo Branco; porém, nas suas obras, a História serve somente como enquadramento a intrigas particulares. As próprias personagens históricas são manipuladas pelo autor de acordo com as suas intenções e objectivos narrativos.

          Ainda no século XIX, Eça de Queirós «revolucionou», de certa forma, o conceito de romance histórico, nomeadamente na obra A Ilustre Casa de Ramires, onde colocou uma das personagens na pele de escritor, precisamente, de romances históricos, o que lhe permitiu a explicitação de alguns processo de construção deste tipo de texto.

          Nas últimas décadas do século anterior (XX), o romance histórico ganhou novo fôlego, embora, tal como no passado, sujeito a diferentes concepções e abordagens.


                1.3. Classificação do Memorial

          A discussão em torno da designação do Memorial como romance histórico ou não prossegue. Sendo verdade que a obra transgride algumas das suas «regras» típicas, também é certo que evidencia alguns processos característicos da recriação do passado, como, por exemplo:
» a linguagem das personagens;
» a descrição pormenorizada dos espaços físicos e de determinados ambientes;
» o relato de episódios que reconstituem acontecimentos históricos;
» a referência à indumentária das personagens.
          Por outro lado, Memorial integra-se na concepção do romance histórico que alia personalidades, eventos e espaços históricos com personagens, acontecimentos e espaços ficcionados. No caso vertente, podemos identificar os seguintes elementos históricos:

a) Personalidades históricas:
. D. João V;
. D. Maria Ana Josefa;
. Os infantes Maria Bárbara, Pedro e José;
. D. Francisco e D. Miguel, irmãos do rei;
. O músico Scarlatti;
. O arquietcto Ludwig;
. O Padre Bartolomeu de Gusmão;
. O bispo inquisidor D. Nuno da Cunha;
. O censor do Paço;
. Frei Boaventura de S. Gião;
. A Madre Paula de Odivelas.
b) Eventos históricos:
. A vinda de D. Maria Ana da Áustria;
. O casamento de D. João V e D. Maria Ana Josefa;
. O "voo" da máquina voadora em 1709, na Casa da Índia;
. Os autos-de-fé (1711 e 1739);
. A edificação do convento de Mafra, entre 1717 e 1730;
. A bênção da primeira pedra do convento, ocorrida a 17 de Novembro de 1717;
. As procissões religiosas, como a do Corpo de Deus descrita no romance;
. As epidemos de cólera e de febre amarela em Lisboa, em 1723;
. As touradas;
. O sismo de 1723;
. Os cortejos nupciais de 1729;
. A sabração da basílca do convento a 22 de Outubro de 1730.
c) Espaços:
. Lisboa e arredores (Palácio Real, Ribeira, Terreiro do Paço, Rossio, S. Sebastião da Pedreira, Odivelas, Azeitão, Arrábida...);
. Mafra e arredores: Alto da Vela, Pêro Pinheiro, Serra de Montejunto, Serra do Barregudo;
. Alentejo (Montemor, Évora, Vila Viçosa, Elvas, Aldegalega, Palácio de Vendas Novas, etc.).
          Mas são, igualmente, diversos os aspectos ficcionados:

a) Personalidades:
. Sebastiana de Jesus, mãe de Blimunda;
. Blimunda e os seus poderes mágicos;
. Baltasar, ex-soldado, maneta e operário nas obras do convento;
. Os pais de Baltasar (João Francisco e Marta Maria), sua irmã (Inês Antónia) e seu cunhado (Álvaro Diogo);
. João Elvas, amigo de Baltasar e antigo soldado também;
. Os trabalhadores do convento (Manuel Milho, José Pequeni, João Anes, Francisco Marques, Julião Mau-Tempo, etc.).
b) Eventos:
. A recolha das vontades, operada por Blimunda;
. O voo tripulado da passarola;
. A importância da música de Scarlatti na cura de Blimunda;
. A peregrinação de Blimunda durante dez anos em busca de Baltasar.
c) Espaços:
. Casa de Blimunda;
. Casa dos pais de Baltasar;
. Abegoaria;
. etc.

Uma análise - Memorial do Convento

1. Autor
2. Contexto

3. Acção
            -» Código linguístico;
            -» Código religioso;
            -» Código sexual e amoroso;
            -» Transgressão ficcional.

4. Personagens
               » D. João V <-> D. Maria Ana Josefa
               » Baltasar <-> Blimunda

5. Espaço
6. Tempo
7. Classificação do romance

8. Narrador
9. Linguagem

10. Simbolismo

11. Crítica

terça-feira, 11 de maio de 2010

Postal dos Correios - Versão II

Piscator

          Piscator foi um actor e encenador, portanto um homem do teatro, que trabalhou com Brecht e que esteve na origem da revolução dramatúrgica encetada por este último.
          Piscator considerava que uma peça de teatro serve para que se compreenda o mundo e a história e que o público deve manter-se afastado da acção, não se deixando encantar ou enfeitiçar por ela. Além disso, defendia encenações com poucos recursos técnicos, mas recorrendo a linguagens muito diversificadas. Para ele, o teatro era um veículo de actuação, de intervenção, de educação, muito próximo do teatro épico posteriormente teorizado por Bertold Brecht.

Osborne

          Logo a seguir à dedicatória e antes da apresentação das personagens, encontramos um excerto de uma peça de John Osborne, dramaturgo inglês dos anos 50 e 60 que se caracteriza por um estilo muito crítico relativamente aos valores sociais mais tradicionais.
          A referida citação foi retirada de uma peça do dramaturgo, televisionada em 1960.
          O seu teatro é caracterizado pelo enquadramento individual do herói num contexto de época, reflectindo um drama de consciência. Ora, um dos problemas focados por Osborne é o do confronto do liberalismo, proclamado por uma voz individual, e do tradicionalismo em vigor numa sociedade ultrapassada, o qual pode ser encontrado também na peça de Sttau Monteiro. De facto, nesta, um indivíduo, Gomes Freire, que preconiza o futuro, o progresso, é marginalizado e perseguido por uma ordem inquestionável, a do regime figurado nas personagens Beresford, D. Miguel e Principal Sousa. Por outro lado, se Osborne pretende atingir criticamente a sociedade inglesa da sua época, nomeadamente a monarquia, Sttau procura reflectir sobre o silenciamento, levado a cabo pelo regime autoritário de Salazar, de uma voz de protesto e inconformismo: a do general Humberto Delgado.
          Tal como em Osborne, vamos encontrar em Sttau tiradas monologais (por exemplo, de Manuel e de Matilde) em que toda a riqueza interior das personagens surge desnudada perante o olhar do leitor ou do público.
          As personagens do dramaturgo inglês são figuras sós, excluídas, que falam e não são compreendidas pelos que as rodeiam. No entanto, não se deixam vergar pela ordem instituída a que se opõem, tal como sucede com Gomes Freire, Matilde e Sousa Falcão, verdadeiros rebeldes perante um poder instituído, mas não revoltosos ou revolucionários.
          Holyoake, a personagem de Osborne que consta do excerto transcrito na obra de Sttau Monteiro, defende o direito à opinião («What's the morality of a law wich prohibits the free publication of an opinion?») e auto-proclama-se um homem honesto sobre o qual impende uma única acusação: ir contra a opinião vigente («... I'm here for having been more honest than the law happens to allow.»; «But these weapons are denied only to those who attack the prevailing opinion.»). Assim sendo, esta figura pode ser entendida como uma outra versão de Gomes Freire, o defensor de uma liberdade que o poder autocrático não reconhece e que acaba por ser vítima desse mesmo valor que defende e que o condena.

Brecht

          A peça Felizmente há Luar! é um drama narrativo que surge na linha do teatro épico de Bertold Brecht, dramaturgo de origem alemã, nascido na Bavária em 1898 e falecido em 1956, um dos reformadores do teatro do século XX. Dentre as suas obras, as mais conhecidas entre nós são as peças Ópera dos Três Vinténs (1928), Mãe Coragem e seus Filhos (1941) e O Círculo de Giz Caucasiano (1949). Além de escritor, Brecht foi encenador e director da Companhia Berliner Ensemble. A temática recorrente dos seus textos gira em torno da luta dos oprimidos.

          Os fundamentos do teatro épico são os seguintes:
a. o teatro épico é um teatro didáctico;
b. tem uma função ideológica precisa;
c. designa-se épico no sentido em que é sobretudo narrativo, processando-se essencialmente pela argumentação, em detrimento da sugestão;
d. o teatro deve ser um instrumento de construção e transformação social, dado que deve intervir activamente no curso dos factos históricso e constituir-se como meio para mudar uma época, a partir de uma abordagem racional por parte do espectador;
e. a representação teatral deve tomar como ponto de partida a realidade envolvente, denunciando as injustiças sociais e procurando levar o espectador a reflectir, a reagir criticamente, a tomar uma posição crítica sobre essa realidade - estamos na presença de um novo espectador: crítico e interventivo, que toma partido;
f. ao contrário do drama aristotélico, o espectador do teatro épico não se deve identificar oue emocionar com a realidade que lhe é mostrada através da representação ou com o herói da peça;
g. de facto, o drama segundo Brecht já não se destina a criar o terror (fobos) e a piedade (eleos) no espectador.
          O conceito fundamental do teatro épico é, no entanto, o da distanciação histórica, cujo objectivo passa pela promoção da reflexão do espectador sobre uma realidade que lhe é próxima, recorrendo para isso à encenação de factos históricos.
          Através de uma fábula, isto é, através do retrato de um acontecimento passado que apresenta pontos de contacto com o presente, pretende-se levar o espectador a olhar o mundo de forma lúcida e crítica. Ou seja, a peça deve abordar um tema histórico que funcione como metáfora (na peça de Sttau Monteiro, a realidade representada - a prisão e condenação do general Gomes Freire no século XIX - funciona como metáfora da realidade portuguesa do tempo da escrita - 1961).
          A distanciação possibilita um olhar crítico e uma tomada de posição do espectador perante a realidade que lhe é mostrada e, consequentemente, perante a realidade em que vive. Confrontado com situações de injustiça e de opressão social, ele toma consciência de que a realidade circundante não é imutável e que é capaz de a alterar.
          Por outro lado, as personagens devem distanciar-se do que representam, permitindo que o espectador compreenda que estão ao serviço de uma ideia, de uma denúncia, agindo de modo a não contribuir para que o espectador as confunda com o que representam. Dito de outra forma, a personagem deve ser entendida como porta-voz de uma consciência, cabendo-lhe fazer com que o público não se identifique consigo, antes compreenda que ela é uma máscara, um processo de denúncia.
          Por sua vez, o cenário é muito pouco caracterizado. Como verificamos no Felizmente há Luar!, apenas são referenciados alguns elementos que nos remetem para determinados espaços sociais (por exemplo, as três cadeiras «pesadas e ricas com aparência de trono» - pág. 47 - ilustram as três faces do poder; o «caixote» no qual se sentam uma «velha» - pág. 16 - caracteriza os oprimidos).
          O gestus promove também a distanciação na medida em que abarca um conjunto de atitudes que aponta para a relação do indivíduo com o mundo que o rodeia, podendo servir para indicar um posicionamento de classe (na peça, o 1.º Popular ora macaqueia os modos de um fidalgo, ora «desfaz o gesto com violência» - pág. 17 -, para denunciar que ali ninguém tem relógio, compreendendo-se que assim é porque as condições socioeconómicas não o permitem).
          Quanto à iluminação, contribui para o efeito da distanciação através da incidência ou não, em determinadas personagens, da luz, pretendendo, deste modo, o autor realçar as suas opções ideológicas.
          Os efeitos de som - por exemplo, o ruído dos tambores - contribuem para a distanciação porque apresentam uma função intimidatória, opressora dos populares e de todos os que se opõem ao Poder: «Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído dos tambores» (pág. 17).

          Por último, nota para o facto de a influência de Brecht se reflectir sobretudo no primeiro parágrafo, pois o segundo aflora essencialmente as emoções de Matilde resultantes da prisão do marido e do seu percurso em busca da sua salvação, apresentando uma natureza dramática.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Contexto (tempo da escrita)

» O panorama que se vivia em Portugal em 1961 não era muito diferente do que é descrito em Felizmente há Luar!.
» O regime político instituído sob a direcção de Salazar e que vigorou em Portugal sem interrupção, embora com alterações de forma e conteúdo, desde 1933 até 1974, apresenta alguns aspectos semelhantes aos regimes ditatoriais instituídos por Benito Mussolini na Itália e por Adolf Hitler na Alemanha.
» O Estado Novo distinguiu-se pelos eu carácter autoritário, nacionalista, corporativo, imperialista, profundamente católico e anti-marxista, que recusava a formação de partidos e que impedia a luta de classes.
» Ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, o Estado Novo criou organizações militares para a defesa e propagação dos seus ideais; controlou o ensino e a cultura e colocou a oposição à mercê de poderosos instrumentos de repressão, como a censura e a polícia política.
» Em 1957, foi assinado, em Roma, o tratado fundador da CEE, tendo surgido, em 1959, a EFTA (Associação Europeia do Comércio Livre), factos que estimularam a oposição à política do Estado Novo de Salazar.
» Em 1958, Humberto Delgado concorreu à Presidência da República pela oposição democrática, tendo sido derrotado, provavelmente por fraude eleitoral.
» Em 1959, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto e feroz opositor do regime salazarista, foi forçado a exilar-se. O número de presos políticos aumentou significativamente até 1960.
» Em 1961, iniciou-se a guerra colonial, assistindo-se à mobilização de milhares de jovens e ao exílio de outros. Em Maio, os sessenta e dois subscritores do Programa para a Democratização (liberais e homens da esquerda socialista e comunista) foram presos pela PIDE.
» Em 1962, ocorreram várias greves estudantis, acompanhadas de forte repressão policial.
» Em 1965, a PIDE assassinou o general Humberto Delgado.
» Em 25 de Abril de 1974, ocorreu uma revolução que derrubou o Estado Novo e pôs fim à ditadura, implantando a democracia e a liberdade, tendo como precedentes:
a) a guerra colonial;
b) o crescente descontentamento popular, pela falta de liberdade, pela opressão, pela miséria, insegurança, delação..., dando origem à formação de grupos clandestinos de oposição ao regime;
c) o descontentamento de determinados círculos militares, nomeadamente «os capitães».

Contexto

Na esteira de Brecht, Sttau Monteiro construiu uma peça a partir de um acontecimento do início do século XIX para, dessa forma, denunciar a situação de ditadura e opressão que se vivia no tempo da escrita da peça (1961). Dito de outra forma, o autor não tenciona prestar uma homenagem aos acontecimentos e às figuras que os protagonizaram em 1817, mas intervir criticamente nos domínios político, social e religioso do princípio dos anos sessenta do século XX. Assim, o século XIX constitui uma metáfora do século XX.

1. Tempo histórico
» A acção da peça decorre no ano de 1817, um período conturbado da nossa História, que precede uma das grandes viragens do país: a Revolução Liberal.
» Nas vésperas dessa revolução, a situação de Portugal era de crise em todos os sectores.
» Crise política:
- as recentes invasões francesas tinham deixado o país num estado deplorável;
- a família real e a corte fugiram para o Brasil por causa das invasões francesas;
- esta atitude real suscitou no povo uma sensação de cobardia e de abandono por parte do rei;
- a sede da Monarquia e a capital do Império foram também transferidas para o Brasil;
- as riquezas do estado eram igualmente canalizadas para o Brasil;
- a administração do reino foi entregue a uma tríade: D. Sousa Coutinho, D. Miguel Pereira Forjaz e o oficial inglês William Beresford;
- o auxílio inglês para reorganizar e comandar o exército português (na resistência aos franceses) - Beresford é o símbolo do domínio britânico em Portugal, detentor dos poderes equivalentes aos de um vice-rei - transformou-se no domínio do aparelho militar, no controlo da regência, domínio esse facilitado pela ausência do rei no Brasil;
- a dependência inglesa agravou igualmente as situações de desigualdade social no país;
- o clima de desconfiança que se fazia sentir estimulava as ideias de conspiração e a procura de um líder;
- lentamente, os ideais de liberdade e de igualdade foram ganhando mais adeptos;
- na tentativa de controlar a situação, ocorreu uma tomada sucessiva de medidas cada vez mais opressoras dos maus fracos e indefesos.
» Crise económica:
- as invasões francesas e o auxílio militar inglês arruinaram ó país;
- a agricultura (de subsistência), o comércio e a indústria eram muito débeis;
- a presença da corte no Brasil exigia o afluxo, proveniente de Portugal, de grandes somas de dinheiro em forma de rendas e de contribuições;
- há escassez generalizada de géneros alimentares e miséria popular generalizada.
» Crise ideológica:
- há uma hostilidade crescente aos ingleses, representantes de uma nova ocupação (à ocupação francesa sucedera a ocupação inglesa);
- difundem-se as ideias políticas revolucionárias que contestam a ausência do rei, a presença inglesa e a monarquia, considerada um regime absoluto repressivo.
» Conspiração de 1817:
- em 1817, várias pessoas foram presas sob a acusação de conspirarem contra a vinda de Beresford e contra a Regência;
- a revolta foi abafada à nascença: várias pessoas foram presas, como se disse, e julgadas sumariamente;
- a sentença foi dura: foram executadas doze pessoas, dentre as quais Gomes Freire de Andrade, um homem tido pelo povo como um herói social, simpatizante da maçonaria e das novas ideias;
- no entanto, esta execução, em vez de suprimir definitivamente futuras revoltas, apenas serviu para as estimular, visto que os opositores ao regime se convenceram da tirania dos governadores e da impossibilidade de conseguir quaisquer mudanças no status quo por meios pacíficos.
» Assim, em 24 de Agosto de 1820, ocorreu a Revolução Liberal, com origem no Porto, que tinha como objectivo alcançar a regência do Reino e convocar as cortes para adoptar uma constituição. No entanto, só um segundo levantamento, datado de 15 de Setembro, expulsou os regentes e constituiu um governo interino (chefiado por Freire de Andrade, parente do general-mártir de 1817). Esta revolução conduziu posteriormente, em 1822, à elaboração da primeira Cosntituição portuguesa.
» Em 1823, deu-se a Vila-Francada, uma sublevação de D. Miguel.
» Em Abril de 1824, ocorreu um movimkento militar, desencadeado pelo infante D. Miguel, visando a salvação do Reino dos possíveis perigos do liberalismo. É a Abrilada. Porém, D. João VI, sob pressão diplomática, desautorizou D. Miguel, retirando-lhe o comando do exército.
» Em 1826, faleceu D. João VI, sucedendo-lhe seu filho D. Pedro IV, o Libertador, que promulgou a Carta Constitucional.
» Em 1828, D. Pedro IV, imperador do Brasil, abdicou do trono de Portugal a favor de sua filha D. Maria da Glória (de sete anos de idade). D. Miguel, irmão de D. Pedro, regressou do exílio para assumir a Regência. Jurou a Carta Constitucional, mas, não concordando com uma política liberal, convocou cortes e assumiu o poder absoluto.
» Em 1829, D. Pedro regressou do Brasil e juntou-se à força dos liberais na Ilha Terceira (Açores).
» Em 1832, o exército liberal de D. Pedro IV partiu da Ilha Terceira rumo ao continente e desembarcou na praia do Mindelo, para daí cercar o Porto (Almeida Garrett e Alexandre Herculano integravam este exército).
» Em 1834, deu-se o triunfo dos liberais. Após as vitórias de Almoster (18/02/1834) e Asseiceira (16/05/1834), a Convenção de Évora Monte (26 de Maio de 1834) pôs fim à guerra civil. Em consequência, D. Miguel partiu para o estrangeiro e inciou-se o reinado de D. Maria II (1834-1853).

Frei Diogo de Melo

Frei Diogo de Melo é um homem sério (pág. 13); é o confessor de Gomes Freire e, nessa qualidade, reconhece que ele foi vítima de uma injustiça, para a qual contribuiu a instituição de que faz parte - a Igreja. Não tem qualquer pejo em o elogiar, o que provoca a ira de Principal Sousa.

Esta personagem contrasta com Principal Sousa, visto que representa uma Igreja pura, espelho da honestidade, fé, solidariedade, amor ao próximo, compaixão e sentido correcto de caridade cristã. Neste sentido, contraria o poder religioso instalado, embora não o confronte abertamente. Pede a Matilde que «Não faça a Deus o que os homens fizeram ao general Gomes Freire: não O julgue sem O ouvir.» (pág. 128).

A sua linguagem está eivada de sensibilidade, inocência e compreensão da dor alheia.

domingo, 2 de maio de 2010

Sousa Falcão

António Sousa Falcão é o inseparável amigo de todas as horas de Gomes Freire, sendo-lhe totalmente fiel e leal.
Admirador profundo do general, com ele partilhou sonhos e ideais, no entanto não possui a coragem, a determinação, a combatividade e a força interior do casal. Só no final da peça deixa transparecer a raiva e o desespero reprimidos durante muito tempo, quando D. Miguel o acusa de ser amigo de um traidor: «Cão! Covarde! Assassino! (pág. 119). Solidário, manifesta constantemente o seu apoio incondicional a Matilde, sofrendo juntamente com ela e mostrando-se angustiado e desiludido com a condenação do general.
No final da peça, vive uma crise interior, motivada pela condenação do general, o que o leva a efectuar uma introspecção e a concluir, desiludido, que nem sempre actuou segundo os seus ideais; foi um fraco e cobarde, pois faltou-lhe coragem para agir (contrariamente a Gomes Freire, apesar de defenderem os mesmos ideais de liberdade e justiça) - a própria postura («ombros caídos e braços pendentes» - pág. 87) reflecte a sua fraqueza interior. Todavia, o reconhecimento da sua fraqueza proporciona-lhe alguma paz interior.
Em suma, a figura de Sousa Falcão representa a impotência perante a prepotência e o despotismo no poder.