sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Aula 32

. Análise do poema "Esta Velha Angústia".
-----Todo o poema, que se pode inscrever na 3.ª fase poética de Campos, se desenvolve em torno da expressão da angústia do sujeito poético. Logo a abrir, o deíctico demonstrativo esta (repetido em anáfora, nos versos 1 e 2 - de notar como a iteração e a disposição em anáfora têm por finalidade a expressão do estado de alma do sujeito) e o adjectivo qualificativo velha orientam o leitor no sentido dessa temática central.
-----O sujeito poético pretende comunicar que a angústia que o consome é real ("Esta... angústia, / Esta angústia" - vv. 1-2, "este mal-estar" - v. 9) e se vem a desenvolver na profundidade da sua alma ("em mim" - v. 2, "a fazer-me pregas na alma!" - v. 9 - ou seja, que deixou marcas), desde a idade da razão, quando começou a tomar consciência de si ("velha" - v. 1, "que trago há séculos em mim" - v. 2 - notar a hipérbole, para mostrar convicção, enraizamento da angústia).
-----E infere-se que tal acontece desde a idade da razão, desde quando ele tomou consciência de si, em termos racionais, pelo modo como o sujeito se refere à infância (fase da vida anterior à aquisição da consciência, do acto reflexivo; estado de felicidade e ausência de pensamento), nos versos 23 a 28: a apóstrofe à "velha casa" e a sua personificação (v. 23 - e "Quem te diria", v. 24), a adjectivação ("Pobre velha casa", "infância perdida" - v. 23), o deíctico possessivo ("minha infância" - v. 23), as exclamações retóricas (vv. 23, 24), as interrogações retóricas (vv. 25, 26, 28), as construções anafóricas ("Que é", "Que é", vv. 25-26; "Está maluco", "Está maluco", "Está maluco" - vv. 25, 27, 28), o heteromorfismo e heterometrismo do poema, o ritmo e os jogos de sons. Tudo isso se destina a reforçar, a nível da expressão, o seu desabafo, o seu lamento, a sua admiração pelo modo como chegou à situação em que se encontra. Que é do menino da casa? O menino, centro das atenções na casa? - "Está maluco", "Está maluco" (vv. 25, 27, 28), desacolheu-se (v. 24).
-----Agora a vasilha (o coração - relacionar com o verso 38) transbordou (vv. 3, 7 - e note-se a expressividade do período de uma só palavra, no verso 7). A alma do sujeito já não comporta mais angústia. O sujeito já não a controla por mais tempo, não a pode esconder, tem de exteriorizar o que sente e desejar que o "coração de vidro pintado" estale (v. 38). E, em disposição anafórica, o poeta enumera as consequências desse transbordar: lágrimas, grandes imaginações, sonhos, grandes emoções (vv. 4 a 6). É um estado de pré-demência, de indefinição; é "estar entre" (v. 11), "ser quase" (v. 12), "poder ser que..." (v. 13). E repare-se no tom gradativo, na disposição anafórica, na insistência nos demonstrativos «este... Este... Este... Isto» (vv. 11 a 14 - e note-se como o último pronome tem valor indefinido, exprimindo a dificuldade sentida pelo sujeito em exteriorizar o seu estado de alma), nas frases incompletas, exprimindo hesitação, incerteza, ansiedade (repare-se nas reticências). Esse estado de pré-demência que o sujeito vive caracteriza-se, de facto, por um estar entre. De um lado, a consciência, a sensibilidade; do outro lado, a inconsciência, a insensibilidade. Ele considera-se possuído de loucura, mas consciente dessa loucura - o que intensifica tal estado de loucura e o faz sofrer. É assim que o sujeito se encontra (notar os paradoxos, modo de expressão preferencial em certos estados de loucura): «lúcido e louco» (v. 18), «alheio a tudo e igual a todos» (v. 19), «dormindo desperto com sonhos que são loucura / Porque não são sonhos...» (os sonhos não são realidade, enquanto que a sua loucura o é - vv. 17 a 22).
-----Daí ele desejar endoidecer deveras (v. 10), ser um louco com direito a manicómio, reconhecido por todos como louco (como alguém - v. 15), já que à sua loucura ninguém atribui o estatuto de loucura. Ele é louco, mas consciente, quando a loucura pressuporá a inconsciência por que ele anseia.
-----É expressivo o modo como o sujeito designa essa condição de louco com a consciência de que de facto o é: ele diz-se doido a frio (doido com a consciência de que está doido, o que é um modo fora do comum de estar doido). Tal facto deixa antever a existência de quem seja doido a quente. O doido a quente não sente a sua loucura, daí o sujeito afirmar que está entre: o doido a frio que é e o doido a quente (que "é, ao menos alguém" - v. 15) que seria bom que fosse, para não sofrer. E é por isso que o sujeito desabafa: "Mal sei como conduzir-me na vida" (v. 8). E a consciência que o domina e faz sofrer leva-o a ansiar uma outra solução para a sua angústia: o recurso à religião ("Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!" - v. 29). Mas até essa solução é impossível, visto que ele já não possui mais a inconsciência da infância, fase da vida anterior à idade da razão; ele é um homem adulto, louco a frio, vítima do acto reflexivo. Este apego à religião ("uma religião qualquer", v. 29), um manipanso africano (v. 30), ou "Júpiter, Jeová, a Humanidade" (v. 35), seria uma possibilidade de solução para o seu caso, de facto. Só que não será viável. As coisas têm para cada um o valor que por cada um lhes é atribuído (v. 37). E para o sujeito lírico o sobrenatural perdeu o encantamento que é habitual exercer-se sobre pessoas vulgares. Com efeito, a sua racionalidade exacerbada não lhe permite aderir a essa ordem de valores, até porque se encontra descrente de tudo, cansado de tudo; a angústia, a velha angústia de há séculos, que transbordou, tomou conta dele todo. E esta posição de Campos coaduna-se exemplarmente com a data da composição do poema (16/06/1934), muito próxima, na verdade, do final de vida de Pessoa, que se caracterizou pelo abatimento e pelo pessimismo.
-----E para o seu coração de vidro pintado (repare-se na expressividade da metáfora: de vidro, sensível, mas pintado, de transparência oculta, para se não ver como a angústia transbordou) nenhuma possibilidade seria mais natural do que estalar, partir-se (como é referido noutros poemas de Campos e de Pessoa); em suma: destruir-se, desaparecer. Todavia, isso não se encontra na dependência directa da vontade do sujeito, é somente objecto do seu desejo. Daí o recurso ao imperativo e à função apelativa no derradeiro verso do poema: «estala».
-----Todas as demais possibilidades se esgotaram. E enquanto não estala, o coração é responsável pela loucura a frio do sujeito poético e por que ele se encontra entre, quase, a poder ser que... Já nada lhe resta senão aguardar que estale e desejar e apelar a que estale, para que tenha fim a sua angústia, velha angústia, que transbordou, de há séculos.
(c)

. Correcção da ficha de trabalho sobre a frase complexa.

. Elaboração de um plano colectivo de um texto de reflexão sobre a temátida da emigração, tendo em conta que também Álvaro de Campos foi um emigrante (por exemplo, na Escócia).