quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Autopsicografia - Uma leitura

"Autopsicografia" é um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa ortónimo, escrito segundo a poética tradicional: a composição poética adoptada é a quadra e a métrica o verso de redondilha maior; já a rima segue o esquema ABAB nas três quadras, sendo, por conseguinte, cruzada.

Em termos temáticos, estamos perante a teoria do fingimento poético, uma espécie de arte poética, ou de como se «faz» poesia, em particular, e arte, em geral. Assim, o sujeito poético parte de uma espécie de axioma: "o poeta é um fingidor". Convém notar que esta metáfora, associada ao verbo "fingir", não remete para o campo da «mentira» (fulano é um fingidor = fulando é um falso = mentiroso); de facto, estamos na presença de uma derivação do verbo latino «fingere, que significa «modelar, transformar, criar». Ou seja, o poeta é um criador, um transformador.
Esta tese do «eu» é demonstrada com base na dor, isto é, o acto de criação poética consiste na expressão de uma dor que, sendo primeiro sentida pelo sujeito poético, é representada, posteriormente, através da linguagem. Este dado remete, desde já, para uma dupla dor: a dor real sentida pelo SP e a dor fingida, imaginada, sendo esta última fruto da racionalização da primeira. A oração subordinada iniciada pela conjunção «que» traduz a consequência do que foi estabelecido na oração anterior - "finge tão completamente" -, ou seja, a consequência do acto de fingimento. Os advérbios "tão" (intensidade) e "completamente (modo) evidenciam o elevado grau de intensidade do acto de fingir.

A segunda quadra abre com uma perífrase ("E os que lêem o que escreve") que remete para os leitores. Quer isto dizer que, se na primeira estrofe o poeta tinha apresentado o processo de criação poética na perspectiva do poeta, na segunda o vai fazer na óptica do leitor. Assim, o leitor não tem acesso à dor real do poeta nem à dor imaginada por si; também ele tem de ter acesso a uma dor real para a poder fingir a partir do acto intelectual que é a leitura do poema. Esta dor intelectualizada, resultante da leitura do poema, é a que resulta da interpretação dos leitores, o que significa que há tantas dores dos leitores quanto as interpretações por eles feitas.

A terceira estrofe, de carácter conclusivo, explica o papel do coração (sentidos) e da razão (inteligência) no processo de criação artística. Deste modo, o sujeito poético estabelece um contraste entre o coração, símbolo da sensibilidade, e a razão, o raciocínio, o pensamento, apresentando o primeiro como um "comboio de corda", um brinquedo, procurando demonstrar que, na produção poética, a sensibilidade é subordinada à disciplina, ao mecanicismo da razão (as calhas da roda), ao pensamento. O movimento do coração (nas calhas) é, pois, mecanicista e processa-se a um ritmo inalterável; por outro lado, "entretém" a razão, ou seja, ilude-a, distrai-a, ocupa-a, mas também a mantém, a conserva e alimenta, fornecendo-lhe elementos para o fingimento, a criação poética. Quer isto dizer que as calhas exprimem a subordinação do sentir em relação à razão (pensamento), que ocupa um papel predominante na produção artística. Mas como o comboio não pode dispensar o carril, e o carril só tem razão de ser na passagem do comboio, razão e sensibilidade encontram-se intimamente ligadas.
Além disso, convém notar que a disposição circular dos carris aponta para outra linha de força da poesia de Pessoa: o coração "entretém" a razão, mas não lhe permite quaisquer avanços, porque se desenvolve em círculos, repetitivamente, o que gera angústia, pessimismo, cansaço.
E o que dizer do facto de Pessoa ter escolhido a dor enquanto «elemento» demonstrativo da sua tese?