quarta-feira, 28 de maio de 2008

Poupar... Poupar... Poupar...

In Público

Crítica

1. IGREJA

  • Crítica às circunstâncias que envolveram o surgimento da promnessa de construção de um convento em Mafra, chegando o narrador, inclusive, a levantar algumas dúvidas acerca da eficácia dessa mesma promessa;
  • Crítica ao fanatismo religioso da rainha;
  • Crítica à vivência postiça da religião, segundo as conveniências e as necessidades de cada um;
  • Crítica à Inquisição, instalada no reino para atender o interesse da Coroa, visando o enriquecimento através dos bens subtraídos aos judeus;
  • Crítica ao poder crescente e à influência que a Igreja exerce na vida da nação e dos seus destinos, manietando o povo e o próprio rei;
  • Crítica ao facto de promover e fomentar as diferenças sociais, pois acima de tudo estão os seus próprios interesses;
  • Crítica à mundividência religiosa, caracterizada pelo obscurantismo, pelo fanatismo, pelas práticas da Inquisição, responsáveis pela morte bárbara, pela destruição do Homem, nomeadamente daqueles que, pelo seu espírito superior e pela sua visão própria do mundo, contrastavam com a mediocridade e a ignorância dos preceitos religiosos da época;
  • Crítica à devassidão, à corrupção (económica e moral) e ao desrespeito pelo celibato dos frades e das freiras, atraídos pelos prazeres mundanos, da carne, esquecidos dos votos que fizeram ao consagrarem-se;
  • Crítica ao poder, à vaidade e à hipocrisia da Igreja, que cala as explorações de que o povo é vítima, fingindo ignorar que passa fome e não tem uma habitação condigna.

2. REI

  • Crítica à prepotência, à megalomania, à vaidade excessiva e à ignorância;
  • crítica ao poder absoluto e arbitrário do rei, que não ouve ninguém, excepto o Santo Ofício, decidindo, contra todas as razões de estado e do bom-senso, as instalações em Mafra de modo a lá caberem 300 frades;
  • crítica à má administração do país e das finanças, ao desperdício de uma oportunidade de ouro para desenvolver o reino, aproveitando as imensas riquezas provenientes dos vários pontos do império;
  • crítica ao investimento avultado na construção do convento;
  • crítica à imitação e à importação de modas do estrangeiro (por exemplo, a cama da rainha veio da Holanda e o infante D. Francisco oferece à cunhada jóias produzidas em França);
  • crítica à exploração e à miséria do povo.

3. SOCIEDADE

  • Crítica ao povo pelo seu atraso e pela sua ignorância, pela acefalia religiosa, pela superstição, pelo fanatismo, pela forma festiva como celebra os autos-de-fé.
  • Crítica às desigualdades sociais.
  • Crítica à desumanidade da guerra, à futilidade das suas causas e ao desprezo a que são votadas as pessoas quando deixam de ter préstimo (é o caso de Baltasar).
  • Crítica aos casamentos de conveniência (por exemplo, o de D. João V e de D. Maria Ana), com resultados nefastos (adultério, falta de amor, filhos bastardos...).
  • Crítica às perseguições políticas, justificadas com razões religiosas, culminando na descrição dos autos-de-fé.

Evolução... ou como o mundo pouco mudou.


Publicada por Francisco, in http://psitasideo.blogspot.com/

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Estudar em demasia faz mesmo muito mal!




Tempo do discurso

.O tempo do discurso é revelado através da forma como o narrador relata os acontecimentos. Ele pode apresentá-los de forma linear, optar por retroceder no tempo em relação ao momento da narrativa em que se encontra ou antecipar situações.

1. Analepses
  • Referência a 1624: a explicação, em parte, da construção do convento como consequência do desejo expresso, nesse ano, pelos franciscanos, de possuírem um convento em Mafra;
  • referência à batalha de Jerez de los Caballeros, em “Outubro do ano passado”;
  • D. Maria Ana Josefa "chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa...";
  • D. João V é "um homem que ainda não fez vinte e dois anos...";
  • "S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze." (esta analepse e a anterior permitem deduzir a data de 1711 como a que marca o início da acção - 1211 + 500 = 1711; D. João V nasceu em 1689 + 22 anos = 1711);
  • a referência ao facto de o primeiro auto-de-fé ter acontecido "dois anos depois de se queimarem pessoas em Lisboa", que remete oara 1709;
  • o regresso da nau de Macau, que partiu "há vinte meses", ainda Sete-Sóis andava na guerra;
  • o nascimento e baptizado da infante Maria Bárbara ou do infante D. Pedro, que morrerá com dois anos;
  • o nascimento do futuro rei D. José em 1714.
2. Prolepses
  • As mortes do sobrinho de Baltasar e do infante D. Pedro;
  • a morte de Álvaro Diogo, que viria a cair de uma parede durante a construção do convento;
  • o prenúncio da morte da filha do Visconde de Mafra para daí a dez anos: "... não vai haver muita música na vida desta criança (...) daqui a dez anos morrerá e será sepultada na igreja de Santo António...";
  • a informação sobre os bastardos que o rei iria gerar, filhos das freiras que seduzia: "... por isso se diverte tanto com as freiras (...) que quando acabar a sua história se hão-de contar por dezenas os filhos assim arranjados...";
  • as referências aos cravos (outrora, nas pontas das varas dos capelães; muito mais tarde, símbolos da revolução do 25 de Abril);
  • a associação entre os possíveis voos da passarola e o facto de os homens irem à lua no século XX;
  • a alusão ao tipo de diversões típicas do séc. XVII;
  • a referência à futura existência de cinema e aviões: "... para vir o cinema ainda faltam duzentos anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a passar...".
3. Sumários
  • "Tornou o padre aos estudos, já bacharel, já licenciado, doutor não tarda.";
  • "Aí está Junho".
4. Elipses
  • alguns períodos em que Baltasar e Blimunda estão em Mafra ou em S. Sebastião da Pedreira;
  • as viagens do padre Bartolomeu de Gusmão ao estrangeiro, nomeadamente à Holanda;
  • o período que o padre passou em Coimbra a estudar;
  • o período de nove anos, correspondente à procura de Baltasar por parte de Blimunda: "Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. (...) Milhares de léguas andou..."

Tempo da história

As referências cronológicas do romance são escassas ou descortinam-se por dedução.
  • 1711 ‑ D. João V promete “construir um convento de franciscanos na vila de Mafra” se a rainha lhe der um herdeiro.

    1714 ‑ Nasce o infante D. José, futuro rei, filho de D. João V e de D. Maria Ana.

    1717 ‑ Início da construção do Convento de Mafra, que decorrerá até 1730 (para agradecer o nascimento de D. José).

    1723 ‑ Surto de febre amarela em Lisboa.

    1724 (19 de Novembro) ‑ Furacão em Lisboa.

    1725 ‑ Os casamentos dos príncipes e das princesas está já a ser preparados.

    1728 ‑ D. João V expressa o desejo de inaugurar o convento no dia do seu 41.º aniversário.

    1729 ‑ Casamento dos príncipes portugueses (D. José e D. Maria Bárbara) com os príncipes espanhóis (Fernando e D. Maria Vitória de Bourbon).

    1730 ‑ Sagração da basílica do convento.
    1730 ‑ Desaparecimento de Baltasar.

    1739 ‑ Blimunda procura Baltasar durante nove anos.
    1739 ‑ Auto-de-fé (18 de Outubro), no qual são queimados Baltasar e António José da Silva.

domingo, 25 de maio de 2008

Tempo histórico

1. Dados históricos

  • o título realça o desejo de recordar, remetendo para um passado que é o da construção do convento;
  • os planos da construção do convento e da construção e voo da passarola estão relacionados com a realidade histórica;
  • diversos acontecimentos históricos são abordados no romance:
    -» as referências ligadas ao convento de Mafra respeitam os anos, os dias e até as horas (por exemplo, a colocação e bênção da primeira pedra, cujas cerimónias tiveram início às 7 horas da manhã do dia 17 de Novembro de 1717, o que corresponde, efectivamente, à verdade);
    -» a batalha de Jerez de los Caballeros, que enquadra o aparecimento de Baltasar;
    -» a promessa do rei, por volta de 1711, que deu origem à construção do convento;
    -» a bênção da primeira pedra do convento;
    -» a indecisão do rei acerca do número de frades que o convento albergaria;
    -» a procissão do Corpo de Deus;
    -» a sagração do convento;
    -» a importação de materiais, artistas e obras de arte de vários países da Europa e do Brasil;
    -» o desejo do rei que a cerimónia de sagração ocorresse no 41.º aniversário do seu nascimento – 22 de Outubro de 1730;
    -» o apressar dos trabalhos para que os prazos fossem efectivamente cumpridos;
    -» o recrutamento em larga escala de trabalhadores para a obra;
    -» os custos elevados da obra e a dificuldade de os calcular;
    -» a origem das pedras de Pêro Pinheiro;
    -» as remessas de ouro do Brasil;
    -» os conflitos no Brasil;
    -» os ataques franceses às embarcações portuguesas;
    -» a chegada da nau de Macau;
    -» a elevação do inquisidor a cardeal;
    -» a epidemia em Lisboa;
    -» a morte do infante D. Miguel;
    -» o casamento dos infantes portugueses e espanhóis;
  • personagens históricas: o rei D. João V, a rainha D. Maria Ana, os infantes, membros do clero nomeados, Bartolomeu de Gusmão, Ludovice e Domenico Scarlatti são personagens históricas.

2. Dados ficcionados

O narrador assume que o seu relato é alternativo à História oficial, porque conta aquilo que outros omitiram e que foi esquecido. Consciente da imortalização que acontece sempre que a História é escrita, o narrador tenta imortalizar o maior número possível de pessoas esquecidas pelo discurso oficial.
Assim, quando descreve os homens que foram a Pêro Pinheiro buscar a pedra que ficará sobre o pórtico da igreja, refere o maior número de nomes próprios na tentativa de os imortalizar, já que é esse o seu objectivo: “… tudo quanto é nome de homem vai aqui (…), deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados…”.
Mas outros factos históricos sofrem alterações ou não correspondem exactamente à História. Bartolomeu de Gusmão é uma das personagens em que a correspondência entre a História e a ficção é apenas parcial, como se nota até no nome da personagem, que na obra aparece como Bartolomeu Lourenço e só mais tarde de Gusmão. As notícias mais ou menos nebulosas acerca das suas experiências voadoras são aqui amplamente desenvolvidas e chegam, por momentos, a tornar-se o centro do romance. A própria conversão de Bartolomeu de Gusmão ao judaísmo é já aqui preparada, quando da apresentação das suas reflexões acerca da unidade ou trindade divina. Também a fuga à Inquisição para Espanha e a sua morte nesse país são relatadas no romance com mais ou menos ingredientes ficcionais.
A figura de D. João V e do seu reinado sofrem igualmente adaptações várias, mas mais ligadas ao processo da ironia e ao comentário de uma voz anacrónica do que a alterações históricas consideráveis.
A Inquisição e as suas práticas, os eventos populares e religiosos e o casamento dos infantes de Portugal e Castela servem mais para recriar a ambiência de uma época, sobre a qual o narrador tece comentários vários, sobretudo críticos, do que para adensar a intriga.

sábado, 24 de maio de 2008

Simbolismo

1. Números

  • Sete

Este número surge inúmeras vezes no romance: a data e a hora de sagração do convento (7 da manhã de 17 de Novembro de 1717), os setes anos de permanência de Scarlatti em Portugal, as sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à procura de Baltasar, as sete igrejas visitadas por alturas da Páscoa, os sete bispos que baptizaram a infanta Maria Xavier Francisca comparados a sete-sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor, os nomes Sete-Sóis e Sete-Luas.
O sete representa a totalidade do universo em movimento e é o somatório dos quatro pontos cardeais com a trindade divina.
A sua presença nos nomes de Baltasar e de Blimunda liga-se à mudança de um ciclo e à renovação positiva, cujo resultado será a construção da passarola. De facto, o par amoroso simboliza a harmonia cosmogónica (o dia e a noite) e a sua união perfeita representa o acesso a um outro pode, que simboliza a Totalidade.

  • Nove

Este número representa a insistência e a determinação de Blimunda em procurar o homem amado (de facto, procurou-o durante nove anos) e a intemporalidade do tempo da busca. A deusa grega Deméter também percorreu o mundo inteiro durante nove dias em busca da filha Perséfone, quando esta foi raptada. O nove está também ligado à gestação, à renovação e ao renascimento. Ele parece ser a medida das gestações, das buscas frutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação. De facto, passados os longos nove anos da sua busca, Blimunda reencontra finalmente Baltasar, tratando-se agora não de um encontro físico, mas de uma comunhão mística, e, por isso, total e completa.

2. Personagens

  • Baltasar

Baltasar, soldado acabado de regressar da guerra, apresenta uma deformidade física que o torna uma personagem diferente da maioria e une-o a Blimunda, também ela diferente, pela sua capacidade de ver por dentro das pessoas. A perda da mão esquerda associa-o a um universo saturnino (negativo, pela ideia de paralisação) e infernal, do qual só sairá após a conclusão do seu percurso ascensional, conquistando, através do voo da passarola, a assunção da sua identidade. A sua condição de homem simples e pragmático,aliada à incapacidade intrínseca de questionar os dogmas estabelecidos, faz dele aquele que cria a passarola. Neste sentido, Baltasar, qual Ícaro, aproxima-se demasiado do Sol e, por isso, sofre um castigo: a morte na fogueira.
Por outro lado, Baltasar constitui um elo de ligação entre o universo simbólico e o universo judaico-cristão, pois participa na criação da passarola e na construção do convento, e, igualmente, funciona como elemento catalisador da loucura do padre Bartolomeu de Gusmão e da aceitação tácita de Blimunda. A sua relação é baseada no silêncio, no consentimento mútuo e implícito de ambos numa vida em comum, isto é, uma relação de completude que os torna imunes ao meio que os rodeia, defende-os de superstições, fortalece-os contra medos e temores.
Além disso, simbolizam a dualidade cíclica que, harmonicamente, realiza a cosmogonia universal (o dia e a noite) e representam o andrógino original, isto é, a congregação dos opostos, a totalidade e a perfeição espiritual. É o que ressalta dos nomes, a complementaridade Sol/Lua, dia/noite, luz/sombra, que simboliza a alternância do mundo, a união dos opostos, nomeadamente, o universo divino e o universo humano.
O casamento das duas ideias – Sol e Lua – simboliza a união do princípio masculino com o princípio feminino. Por outro lado, estes nomes, associados ao número sete, simbolizam, além da complementaridade, a perfeição.

  • A mutilação de Baltasar

A mutilação coloca a personagem fora do tempo, ou seja, num nível de actuação diferente, onde irá lutar para obter a sua reintegração no tempo por uma nova utilização das mãos, o que acaba por acontecer com a construção da passarola e com a colaboração na edificação do convento de Mafra. Por outro lado, este defeito físico coloca-nos perante uma personagem que foge ao conceito tradicional de herói do romance.
Aliás, os mutilados são uma presença forte no Memorial, pois o narrador chega a salientar a quantidade de homens mutilados e aleijados, física e psicologicamente, envolvidos na edificação do convento (pp. 242-243).

  • Padre Bartolomeu de Gusmão

O padre Bartolomeu de Gusmão representa, simbolicamente, um ser fragmentário, dividido entre a religião e a alquimia, vivebdo um conflito interior motivado pela contínua procura de um saber que o conduzirá à subversão dos dogmas religiosos e, posteriormente, à loucura e à morte.
Esta personagem representa o mito de Prometeu e a passarola, a obra de uma vida, representa o pensamento dialéctico, pois congrega o princípio de um barco e o da ave que voa. A busca incessante do “meio” que fará voar a passarola leva-o a enveredar pelo estudo das antigas teorias medievais da física, unindo-as às novas descobertas científicas que impregnam a Europa.

  • Scarlatti

Esta personagem simboliza o transcendente que advém da música e que, ligado aos poderes de Blimunda, instaura o domínio do maravilhoso no romance.
Duplo especular do padre Bartolomeu de Lourenço, Scarlatti simboliza a ascensão do homem através da música, numa clara união entre a acção e o pensamento. Pela sensibilidade criadora e pela técnica de execução, Scarlatti liga-se ao mito de Orfeu e contribui para a criação do universo encantatório que cura Blimunda. Com efeito, ele partilhará o sonho do trio e morrerá. Metaforicamente, após o voo da passarola, uma vez que destrói o cravo que o ligava explicitamente à trindade construtora e, implicitamente, ao interdito, isto é, ao sonho de voar.

3. Outros símbolos

  • Sol

O Sol percorre um ciclo celeste diurno de Oriente para Ocidente – assim Baltasar percorrer, no interior da passarola, um ciclo entre Lisboa e Monte Junto; e tal como o sol, para nascer, segundo a antiga mitologia, tem de vencer todos os dias todos os guardiães da noite/morte, assim Baltasar terá que vencer os guardiães da «noite histórica»: a Inquisição, a credulidade popular, as forças espirituais retrógradas da Escolástica. E assim como o sol atravessa o céu, mas nele não se detém nem o conquista definitivamente para si, assim Baltasar atravessa o céu, rompe os céus, rasga a imagem pura de um céu morada de Deus. Neste aspecto, Baltasar, sob as ordens científicas do padre Bartolomeu de Gusmão, assume o estatuto de herói mítico que ousa desafiar a estabilidade aparentemente eterna da ideologia cristã. E para que o simbolismo clássico do herói maravilhoso e trágico que ousa desafiar os deuses seja cumprido na totalidade, Baltasar morre pelo fogo, como herético, o padre Bartolomeu de Gusmão morre louco, em Toledo, e Blimunda vagueia pelo mundo sem destino.

  • Lua

A lua, porque não tem luz própria, é o princípio passivo do sol. Porém, no Memorial do Convento, o narrador atribui a Blimunda capacidades intuitivas e ecovisionárias, dependentes das fases da lua, que a tornam, como elemento activo, tão importante quanto Baltasar. Blimunda não se compreende sem Baltasar e vice-versa, constituindo um par antitético mas intimamente complementar de dia-noite, claro-escuro, Sol-Lua. Baltasar e Blimunda têm o mesmo nível de protagonismo no romance, não sendo nenhum deles superior ao outro. Esta subversão do estatuto social feminino no século XVIII, passivo e submisso face ao poder masculino, é subsidiária do modo de vida a dois do casal, sem casamento oficial e com igualdade de mando e obediência entre ambos.
Por outro lado, a lua, devido às suas fases, que condicionam o poder de Blimunda, é também símbolo do ritmo biológico da Terra, é medida do tempo, frutificadora da vida, guardadora da morte, dispensadora de geração.

  • Passarola

Concebida como uma “barca voadora”, a passarola simboliza o elo de ligação entre o Céu e a Terra. Ela reúne dois símbolos que se opõem: a barca e a ave. No entanto, como a barca remete para a viagem e a ave para a liberdade, a passarola, pelo seu movimento ascensional, representa metaforicamente a alma humana que ascende aos céus, numa ânsia de realização que a liberta do universo canónico e dogmático dos homens.
Assim, a passarola simboliza o sonho, a libertação do espírito e a passagem a um outro estado de existência.

  • O voo da passarola

O acto de voar aparece como uma conquista do progresso e da ciência, como prelúdio do que mais tarde se chamará «aviação». O acto de voar sintetiza, assim, a vitória da razão sobre a crença religiosa e, consequentemente, no triunfo de um futuro libertado sobre um passado considerado supersticioso e alienante.
Por outro lado, representa o progresso enquanto enquadramento da eterna luta do homem para, época a época, a si próprio se ultrapassar e atingir uma dimensão divina ou quase divina. Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu de Gusmão repetem o desejo de Faetonte, filho mortal de Apolo, que, querendo imitar o pai, conseguiu deste a promessa de o deixar guiar o carro do sol por um só dia. Porém, Faetonte não conseguiu manobrar os cavalos e sustentar o carro do sol na abóboda celeste e o carro despenhou-se sobre a Terra, incendiando-a e matando o jovem ousado. Do mesmo modo, o padre Bartolomeu de Gusmão e Baltasar morrerão devido ao seu desejo de voar e Blimunda tornar-se-á em mulher errante.

  • Vontades recolhidas por Baltasar

As vontades recolhidas por Blimunda, necessárias para fazer erguer a passarola e metaforizadas nas nuvens fechadas que se situam na boca do estômago, são as vontades humanas que, ao longo de séculos, coincidiram e fizeram o progresso do mundo.

  • O olhar de Blimunda em jejum

O olhar de Blimunda em jejum permite-lhe conhecer eficazmente a alma, o interior e o invisível. Simbolicamente, o olhar possui um poder mágico e é o instrumento de ordens interiores: mata, fascina, fulmina, seduz do mesmo modo que exprime.

Linguagem e Estilo

1. Figuras de estilo

  • Ironia: a visão crítica dos acontecimentos do narrador é, geralmente, suportada pela ironia (relação rei/rainha, determinados actos religiosos, autos-de-fé, etc.).
  • Metáfora: "(...) esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga..." (p. 27).
  • Hipálage: "(...) a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne..." (p. 42).

2. Registos de língua

  • Língua popular e familiar, geralmente com função crítica e irónica ou como forma de explicitação da classe social das personagens: "emprenhar" (p. 11), "vossemecê" (p. 40);
  • Calão: "puta", "merda".

3. Verbo

  • Uso do presente do indicativo (p. 39):transporta o leitor para o tempo da narrativa;
  • Modo imperativo, relembrando a oratória barroca - Padre António Vieira (p. 308);
  • Gerúndio.

4. Construção frásica

  • frases longas que, por um lado, aproximam o texto do discurso oral e, por outro, traduzem o monólogo interior e a celeridade do pensamento (pp. 94, 131);
  • paralelismo de construção (p. 26);
  • ausência de sinais gráficos indicadores de diálogo, sendo a vírgula que separa as falas das personagens;
  • ausência dos pontos de exclamação e de interrogação;
  • paralelismo de construção (p. 26);
  • enumeração (p. 335);
  • hibridismo de tipologias discursivas: utilização do discurso directo, indirecto e indirecto livre, sem recurso, porém, aos tradicionais sinais gráficos (dois pontos, seguidos de travessão) e lexicais (verbos introdutores do discurso como “perguntar”, “declarar”, “dizer”, “afirmar”, etc.);
  • polissíndeto (pp. 99, 112-113).

5. Oposições sugeridas por vocábulos antónimos para sugerir as diferenças entre ricos e pobres (p. 27).

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Narrador - Focalização

1. Focalização interna

A predominância da focalização interna significa que, na obra literária, se instaura o ponto de vista de uma das personagens que vive a história.
No Memorial do Convento, existe focalização interna quando, por exemplo, Sebastiana de Jesus nos relata os acontecimentos (pp. 52-53), o mesmo sucedendo com Baltasar (p. 217).


2. Focalização interventiva

Esta focalização funciona como uma espécie de comentário, aliado à adesão ou rejeição de comportamentos ou formas de estar das personagens, apresentando, geralmente, uma função ideológica.
Assim, existe focalização interventiva quando o narrador tece comentários com carácter valorativo a propósito dos eventos narrados (p.123-124); quando os comentários do narrador reflectem a voz do povo, assumindo o seu registo de língua (pp. 31, 229); quando recorre a aforismos (pp. 27, 268, 287, 298, 306, 325, 346) e quando as intervenções surgem como prolepses, antecipando acontecimentos futuros (pp. 213-214).


3. Focalização omnisciente

A omnisciência do narrador significa que este tem um conhecimento total dos acontecimentos e fornece, sobre eles, os dados fundamentais para que a intriga possua coerência. No fundo, o narrador instaura-se como um deus que tudo sabe, vê e ouve, tendo acesso, inclusive, aos pensamentos das personagens.
Neste romance, o narrador possui um saber que implica não só a transcendência em relação a todas as personagens como uma perspectiva tridimensional do tempo – presente, passado e futuro – a que está subjacente uma visão integrada dos acontecimentos e a inscrição dos fenómenos narrados numa determinada cultura, transversal a um conhecimento global da História. É este conhecimento que permite ao narrador seguir eventos ocorridos em tempos diferentes, estando presente ao nível do tempo da história (século XVIII) e, simultaneamente, num tempo posterior, o do discurso ou da enunciação.

Narrador - Presença

O narrador de Memorial do Convento é, geralmente, heterodiegético, ou seja, é uma entidade exterior à história que assume a função de relatar os acontecimentos. Surge normalmente na terceira pessoa (visível nos pronomes e verbos na terceira pessoa), ainda que, por vezes, ocorra a primeira pessoa do singular e do plural, identificando-se, então, com as outras personagens: “(…) na grande entrada de onze mil homens que fizemos em Outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos (…) A Olivença nos recolhemos, com algum saque que tomámos em Barcarrota e pouco gosto para gozar dele (…)” – p. 35. Neste excerto, encontramos um narrador homodiegético, um narrador que é uma personagem da história, que revela as suas próprias vivências, que se insere na diegese e que, em determinada situação, reivindica o relato dos acontecimentos que viveu.

Por vezes, a voz do narrador heterodiegético confunde-se com o pensamento de outra personagem: “Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera em Lisboa, e em Mafra, donde partiu anos atrás para assentar praça na infantaria de sua majestade, se pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias der que esteja morto, ou morto porque as não têm de que seja vivo. Enfim, tudo acabará por saber-se com o tempo.” (p. 36).
Noutros momentos, encontramos a união entre a voz do narrador e a de outra(s) personagem(ns) em substituição do discurso directo: “Num canto da abegoaria desenrolaram a enxerga e a esteira, aos pés delas encostaram o escano, fronteira a arca, como os limites de um novo território, raia traçada no chão e em panos levantada, suspensos estes de um arame, para que isto seja de facto uma casa e nela possamos encontrar-nos sós quando estivermos sozinhos.” (p. 90).

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Espaço psicológico

1. Os sonhos:

  • os sonhos do rei de da rainha contrastam com os das outras personagens, sobretudo porque evidenciam o desamor que marca a relação do casal real: D. João V sonha com a sua própria imortalidade, com a descendência e com o convento, enquanto D. Maria Ana sonha com o cunhado;
  • Baltasar sonha com Blimunda, com o trabalho, com os animais, a terra, o ar;
  • Baltasar e Blimunda têm sonhos comuns e, por vezes, sonham em conjunto com o padre Bartolomeu de Gusmão, nomeadamente no que diz respeito à passarola, o que evidencia o profundo envolvimento das três personagens na realização daquela obra, ao contrário da construção do convento, executada à custa do trabalho de milhares para a realização do sonho de um só - D. João V.

2. Os pensamentos:

  • os pensamentos das personagens revelam o seu mundo interior, os seus desejos, sonhos e ambições.

3. A atmosfera do romance

  • A atmosfera do romance é densa e pesada, em virtude da religiosidade opressiva, com traços de fanatismo, imposta pelos clérigos e pelas ordens religiosas que manobram a vida dos lisboetas, os habitantes da corte, os operários que trabalham nas obras do Convento de Mafra. Tudo parece girar em função da motivação religiosa: desde o nascimento da herdeira real, resultado de uma promessa, à construção do convento. A própria rainha vive dominada pelo fanatismo religioso.
  • Por outro lado, à excepção das touradas, todos os divertimentos e acontecimentos importantes ou são de cariz religioso, ou têm a ver com a Igreja, ou misturam o religioso e o profano (como os festejos que antecedem a procissão do Corpo de Deus), ou ainda a religião e a luxúria (por exemplo, a procissão da penitência e as saídas das mulheres para visitar as igrejas durante a Quaresma). Pairando sobre tudo isto está sempre a mancha negra da Inquisição e os autos-de-fé, para gáudio e elevação espiritual de nobres e plebeus.
  • O sermão proclamado aquando do transporte da pedra e após a morte de Francisco Marques representa a demagogia exercida pelo clero sobre o povo ignorante.
  • O lar de Marta Maria e João Francisco distinguem-se desta imagem profundamente negativa da sociedade portuguesa, pela tolerância com que recebem o filho e a nora, que suspeitam não estar casados conforme mandam as leis da Igreja -, não questionando algumas estranhezas que notam em Blimunda, embora essa tolerância não seja tão grande que a aceitassem se ela fosse uma cristã-nova.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Espaço social

1. Paço:


  • A subserviência e o vazio dos gestos repetidos e inúteis por parte do enxame de cortesãos que rodeiam o rei e a rainha.

2. Entrudo e Quaresma:

  • A religião como pretexto para a prática de excessos (satisfação dos prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas (as pessoas comem e bebem em demasia, dão "umbigadas pelas esquinas", atiram água à cara umas das outras, batem nos mais desprevenidos, tocam gaitas, espojam-se nas ruas...);
  • A penitência física e a morificação da alma após o desregramento durante o Entrudo (é tempo de "mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se...");
  • As manifestações de fé caracterizadas pela histeria (as pessoas arranham-se, arrastam-se pelo chão, puxam os cabelos, esbofeteiam-se, autoflagelam-se);
  • A sensualidade e o mistcismo.

3. Histórias de milagres e de crimes:

  • A superstição e a crendice;
  • A superficialidade;
  • A libertinagem.

4. Autos-de-fé:

  • A repressão religiosa e política;
  • O fanatismo;
  • O carácter sanguinário das diversas classes (o celebrar e festejar a morte);
  • A procura de emoções fortes que preencham o vazio da existência;
  • A futilidade, a vaidade e os jogos de sedução femininos (a preocupação com as toilettes, os sinaizinhos no rosto, as borbulhas encobertas...).

5. Baptizados e funerais régios:

  • O luxo e a ostentação;
  • A vida e a morte como espectáculos.

6. Elevação a cardeal do inquisidor D. Nuno da Cunha:

  • O luxo e a ostentação.

7. Vida conventual:

  • A libertinagem e a devassidão;
  • O desrespeito pelas normas religiosas.

8. Touradas:

  • O sangue a morte como espectáculo e divertimento (a tortura dos touros, o sangue, as feridas, as "tripas").

9. Procissão do Corpo de Deus:

  • O luxo e a ostentação;
  • A sobreposição do profano ao sagrado;
  • A libertinagem e a vida dissoluta do rei;
  • A histeria e o fanatismo (as pessoas batem em si próprias e aos outros).

10. Cortejo de casamento:

  • O casamento da realeza;
  • A vida feminina;
  • O luxo e a ostentação desmedidos;
  • O contraste desse luxo com a fome e a miséria do povo, que luta pela sobrevivência e se entrega a comportamentos imorais;
  • O estado deplorável dos caminhos.

11. Trabalho no convento:

  • A servidão e a escravidão populares (os homens são obrigados, na maioria dos casos, à força de armas, ou voluntariamente, na mira de um salário e de alimentação certa, a abandonar as suas casas e a construir o convento, vivendo em barracões, executando um trabalho desmedido e roídos por doenças venéreas).

Em suma, Lisboa é representada como um espaço infecto, alimentado pelo ódio (aos judeus e aos cristãos-novos), pela corrupção moral eclesiástica, pelo poder repressivo e hipócrita do Santo Ofício e pelo poder autocrático do rei.

Espaço físico / geográfico

A acção de Memorial do Convento desenrola-se em dois grandes espaços: Lisboa e Mafra, a que se acrescenta o Alentejo, em circunstâncias bem específicas.

Lisboa é um macroespaço caracterizado, genericamente, como uma cidade muralhada e com abundância de igrejas ("Lisboa derramava-se para fora das muralhas. Via-se o castelo lá no alto, as torres das igrejas dominando a confusão das casas baixas, a massa indistinta das empenas." - p. 40), o que denuncia o ambiente profundamente religioso e beato que a domina. Por dentro, é descrita como uma cidade suja ["(...) a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove." - p. 28].

Enquanto macroespaço, integra outros espaços:
  • Mercado de peixe, espaço contrastante com a visão imunda da cidade ("Sete-Sóis atravessou o mercado de peixe. (...) Mas no meio da multidão suja, eram miraculosamente asseadas, como se as não tocasse sequer o cheiro do peixe que removiam às mãos cheias..." - p. 42).

  • Paço: trata-se de um espaço de que não há grandes descrições, ressaltando apenas as atitudes das personagens que o habitam e os factos que lá têm lugar.

  • Terreiro do Paço: local onde Baltasar trabalha num açougue, após a sua chegada a Lisboa (p. 71).

  • Rossio: local onde decorrem os autos-de-fé.

  • S. Sebastião da Pedreira: espaço relacionado com a passarola e ao seu carácter mítico (pp. 65 - 67). Na época, era um espaço rural, onde existiam várias quintas que integravam palacetes.

  • Abegoaria: constitui o ninho de amor de Baltasar e Blimunda. Da descrição que o narrador dela faz, podemos inferir a simplicidade da vida e a pobreza do casal ("Num canto da abegoaria desenrolaram a enxerga e a esteira, aos pés dela encostaram o escano, fronteira a arca, como os limites de um novo território, raia traçada no chão e em panos levantada, suspensos estes por um arame para que isto seja de facto uma casa..." - p. 88). Por outro lado, aí se vai construindo a passarola.

O outro espaço é o de Mafra, o segundo macroespaço (pp. 110 - 111), pouco descrito. É aí que milhares de homens, em condições infra-humanas, vão construindo, ao longo de décadas, o convento, muitos deles perdendo lá a própria vida ("... o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste que o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno..." - p. 117). Nesta vila, destaca-se outro espaço: o alto da Vela, local escolhido por D. João V para edificar o convento e que deu lugar à chamada vila nova, à volta do edifício. Nas imediações da obra, surge a Ilha da Madeira, onde começaram por se alojar dez mil trabalhadores, ascendendo, posteriormente, a quarenta mil.

Um terceiro espaço é o Alentejo, um lugar povoado por medigos e salteadores. Esta zona do reino é percorrida por Baltasar aquando do seu regresso da Guerra da Sucessão e, mais tarde, pelo cortejo real, que vai de Lisboa a Elvas, por ocasião do casamento dos príncipes D. Maria Bárbara e D. José com os príncipes espanhóis. Nestas ocasiões, realçam-se a miséria e a penúria de quem aí habita, bem como os caminhos de lama e de pobreza.

Outros locais a considerar são Pêro Pinheiro, local de onde é originária a pedra, e a Serra do Barregudo, lugar onde a passarola pousou e esteve escondida e donde partiu para a derradeira e fatal viagem de Baltasar.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Blimunda

Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descrito diversas vezes - de facto, possui uns olhos misterioros, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, é às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - p. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (p. 103).
Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro no auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, observar por dentro das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos). Esses seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto, ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que se possa encontrar.
É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela suas ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").

O seu único amor é Baltasar, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (p. 168). Com efeito, apaixonada por Baltasar, mantém com ele uma eterna relação de amor, de cumplicidade e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer; · o amor que vivem é um amor não-cristianizado mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular (“O casamento e a mortalha no céu se talha”), convivendo em harmónica união (“Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais…” – p. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza um ciclo completo, uma perfeita dinâmica. Talvez por isso nunca tenham tido filhos.

Por outro lado, é interessante notar que o envelhecimento físico não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos de Baltasar, Blimunda continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento a nível físico que os atingiu, após a peregrinação em busca de “vontades” por Lisboa, levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: “… cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas…” (p. 181).
Blimunda, tal como Baltasar, ajuda na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das “duas mil vontades”, princípio mágico que fará voar a passarola; recolha essa feita na procissão do corpo de Deus, porque é uma ocasião em que as almas e os corpos estão debilitados e não são capazes de segurar as vontades. Essa esforço deixou Blimunda doente, “uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele”.

Com o decorrer· da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XIII, p. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte. sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (Padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti, Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao olhar de Blimunda e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e o seu destino foi procurá-lo durante nove anos – durante essa procura acabou por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o próprio marido em defesa da sua mulher: “Do outro lado do convento, num rebaixo (…) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso.” (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequênciua desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: “… que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar…” (p. 354). Na sua incansável demanda, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, precisamente o mesmo em que se encontrava António José da Silva, o Judeu, autor de comédias de bonifrates.

Exames

Em alturas de «apertos», todas as ajudas são bem recebidas.

Baltasar Mateus

Baltasar Mateus - a primeira das personagens ficcionais deste trabalho - é um soldado recém-chegado da Guerra da Sucessão espanhola (1704 - 1712), natural de Mafra e com 26 anos. Aproveita uma deficiência física - é maneta, em virtude de ter perdido a mão esquerda na aguerra, "estraçalhada por uma bala" -, que provocou a sua expulsão do exército, o que significa que, à semelhança do Bailote de Aparição ou do Antigo Soldado de Felizmente há Luar!, representa todos aqueles que são explorados até ao tutano enquanto saudável e que, de pois, são desprezados e abandonados quando já não têm utilidade prática.
Essa expulsão leva-o a vaguear como pedinte em Évora com o intuito de fazer um gancho que lhe substitua a mão perdida até chegar a Lisboa, onde conhece Blimunda num auto-de-fé.
O envelhecimento físico que vai manifestando ao longo da obra, à medida que os anos passam, não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Blimunda, sobretudo porque aos seus olhos Baltasar continua o mesmo: “… tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombos, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo…” (p. 326)[1];
Mais tarde tornar-se-á um dos operários que trabalham na construção do convento como servente ou a fazer carretos com os carros de mão, participando igualmente na construção da passarola, factos que contribuem para o agigantar da sua imagem ao longo do romance, chegando mesmo a atingir uma espécie de divinização: “(…) Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo (…)”; “Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar.” (cap. VI, p. 68).
No fundo, Baltasar é apresentado como um marginal, lutando pela sobrevivência e não hesitando em matar, uma espécie de herói pícaro[2]:
  • foi soldado na Guerra de Sucessão espanhola, donde foi expulso por ter ficado mutilado da mão esquerda;
  • sem salário, inicia uma vida aventureira e errante: pede esmola para conseguir ter um gancho de ferro, mata um homem que o quisera roubar e conhece João Elvas, rufia e antigo soldado;

Além disso, encarna a crítica à inutilidade da guerra, já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios: “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas (…) por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum…” (p. 36).


[1] O narrador faz aqui uma distinção entre duas perspectivas: a “nossa”, objectiva, externa, que só vê aparências; a de Blimunda, subjectiva, interna, que “vê” mais longe e mais fundo, porque observa com os olhos do amor.

[2] A picaresca caracteriza-se por uma série de peripécias e aventuras vividas por uma personagem (o herói pícaro) da baixa condição social, que serve a vários amos, em toda a espécie de expedientes, esfomeado, errante, com um código de honra muito duvidoso que consiste em safar-se da forma mais airosa possível de toda a sorte de dificuldades, principalmente através da sua astúcia e habilidade pouco escrupulosas.

domingo, 18 de maio de 2008

Classificação do romance

1. O conceito de romance histórico

De acordo com a «definição actual» de romance histórico, este terá tido início no século XIX, com o Romantismo, período literário que valorizava imenso o passado histórico. Romances anteriores, como o Princesse de Clives, da autoria de Madame de Lafayette, não cabem nesta classificação, uma vez que não possuem/não possui traços essenciais como a factualidade e o rigor históricos.
Assim, determinados autores consideram que o primeiro romance histórico é Waverley, saído da pena do escritor britânico, natural de Edimburgo, Sir Walter Scott (1771 - 1832), escrito em 1814 e que vem definir as características do género.

1.1. Características do romance histórico

O romance histórico procura a recriação histórica, que passa, entre outras coisas, pela criação de ambientes, traduzidos pela chamada «cor local», obtida através de uma série de recursos:

  • evocação, o mais fiel possível, da linguagem da época e dos diferentes grupos sociais;
  • descrição pormenorizada do vestuário e da indumentária das personagens;
  • reconstituição de espaços (cidades, castelos e monumentos), com especial incidência nos aspectos arquitectónicos;
  • recriação de grandes movimentações das personagens (saraus, torneios, manifestações populares), procurando criar a ilusão de fidelidade ao tempo narrado;
  • a presença de personagens referenciais, ao lado de personagens ficcionais, frequentemente os heróis dos romances históricos, na medida em que proporcionam ao autor maior / total liberdade criativa.

A prossecução dessa fidelidade ao real histórico leva os escriores a socorrerem-se de fontes diversas: «documentos antigos», «velhos livros», «memórias», etc. Exemplificativa deste aturado trabalho de pesquisa é a recente polémica que envolveu o jornalista-escritor Miguel de Sousa Tavares e o seu penúltimo romance - Equador -, acusado de plagiar obras estrangeiras, ao incluir no seu texto extractos das mesmas.

1.2. O romance histórico português

O primeiro autor português a cultivar uma forma de romance histórico foi Alexandre Herculano (Lendas e Narrativas; O Bobo; Eurico, o Presbítero...), cujos protagonistas eram geralmente personagens medievais profundamente românticas no que diz respeito ao seu comportamento e forma de sentir e estar. No entanto, é visível a sua preocupação com a veracidade nas constantes referências às fontes, pergaminhos ou manuscritos consultadas.

Outro autor foi Camilo Castelo Branco, porém, nas suas obras, a História serve somente como enquadramento a intrigas particulares. As próprias personagens históricas são manipuladas pelo autor de acordo com as suas intenções e objectivos narrativos.

Ainda no século XIX, Eça de Queirós «revolucionou», de certa forma, o conceito de romance histórico, nomeadamente na obra A Ilustre Casa de Ramires, onde colocou uma das personagens na pele de escritor, precisamente, de romances históricos, o que lhe permitiu a explicitação de alguns processo de construção deste tipo de texto.

Nas últimas décadas do século anterior (XX), o romance histórico ganhou novo fôlego, embora, tal como no passado, sujeito a diferentes concepções e abordagens.

1.3. Classificação do Memorial

A discussão em torno da designação do Memorial como romance histórico ou não prossegue. Sendo verdade que a obra transgride algumas das suas «regras» típicas, também é certo que evidencia alguns processos característicos da recriação do passado:

  • a linguagem das personagens;
  • a descrição pormenorizada dos espaços físicos e de determinados ambientes;
  • o relato de episódios que reconstituem acontecimentos históricos;
  • a referência à indumentária das personagens.

Domenico Scarlatti

Scarlatti é o quarto elemento que vem juntar-se ao trio Baltasar, Blimunda e Bartolomeu: à força física de Baltasar, à magia de Blimunda, traduzida na capacidade de recolher vontades, à ciência do padre Bartolomeu de Gusmão, vem unir-se a arte do músico (“Senhor Scarlatti, quando o enfadar o paço, lembre-se deste lugar. Lembrarei, por certo, e se com isso não perturbar o trabalho de Baltasar e Blimunda, trarei para cá um cravo e tocarei para eles e para a passarola, talvez a minha música possa conciliar-se dentro das esferas com esse misterioso elemento…” - pp. 170-171).
Assim sendo, tratando-se do quarto elemento, Scarlatti associa-se ao simbolismo do n.º 4, o número da terra, dos pontos cardeais, das fases da lua, das estações do ano, das etapas da vida humana, representando, portanto, a plenitude, a totalidade. Com efeito, estas quatro personagens remetem para a ideia de deificação do Homem, uma vez que são capazes de se libertar da materialidade.
Por outro lado, a sua música assume grande significado em determinados passos do romance. Por exemplo, é ela que cura Blimunda, permitindo-lhe prosseguir a sua tarefa de recolher as vontades que permitirão o voo da passarola. No entanto, não se infira daqui a constituição de um «quarteto» no que toca ao projecto da passarola, que Scarlatti não segue até ao seu desenlace, visto que apenas assiste à sua partida. Curioso é o facto de o seu cravo repousar, escondido, no fundo de um poço (p. 198), enquanto a passarola permanecerá, longo tempo, escondida na serra de Monte Junto.

Nas palavras de Adelina Moura, «Scarlatti personifica a arte (pp. 162-163) que, aliada ao sonho, permite a cura de Blimunda (pp. 186-187) e possibilita a conclusão e o voo da passarola (p. 173)».

Fumar faz mal...


quinta-feira, 15 de maio de 2008

Povo

A personagem colectiva povo é uma personagem anónima, concretamente a gente que construiu o convento de Mafra, isto é, que trabalhou e sofreu às mãos do rei e dos seus desejos megalómanos, de cumprir a promessa, em suma, da sua vaidade.
O povo, humilde e trabalhador, vive na mais completa miséria, física e moral, daí que não se estranhe o facto de o narrador o elogiar e enaltacer constantemente, procurando, desse modo, tirá-lo do anonimato e individualizá-lo em várias personagens (por exemplo, atribui-lhe um nome para cada letra do alfabeto - p. 242). O episódio da Epopeia da Pedra simboliza, precisamente, os trabalhos e as dificuldades que teve de enfrenter na construção do convento.
Assim, o povo constitui o verdadeiro herói da obra, um herói diferente, no entanto, do habitual, porque deficiente, feio, rude e às vezes violento: “(…) não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades…” (p. 242).
No fundo, o que o narrador pretende ao inaugurar este nova visão do povo é apresentar uma interpretação diversa da que a História registou, ou seja, destacar os operários (cerca de 40 000) que, humildemente, sofreram e procuraram sobreviver à construção do convento: “Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixem, com perdão da anacrónica voz…” (p. 257). Dito de outra forma, pretende-se que os verdadeiros heróis que estiveram na génese dos grandes feitos e das grandes obras não sejam, ao contrário do que registam os livros de História, os reis e os líderes, mas aqueles que, com o seu esforço, a sua dedicação e a sua coragem, foram o braço indispensável à realização desses feitos e dessas obras.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Frei Bartolomeu Lourenço de Gusmão

O Padre Bartolomeu de Gusmão é uma personagem parcialmente referencial, como o próprio nome, já que a designação de Lourenço não aparece nos livros de História, assim como não são factos históricos a construção da passarola (da qual só é conhecido um desenho) e a viagem de Lisboa até Mafra.

Ele é, antes de mais, um sonhador: tem o sonho de voar, por isso toda a sua acção se centra na construção da passarola, projecto concretizado na quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. A concretização desse sonho depende da protecção e da amizade de D. João V, o que não consegue impedir a perseguição do Santo Ofício. Não obstante todas as dificuldades que lhe surgem, acaba por construir a passarola e voar, com a ajuda de Baltasar e Blimunda.
Bartolomeu de Gusmão tem, no início da obra, 26 anos, a mesma idade de Baltasar. Sendo, de facto, em parte, uma personagem referencial, apresenta diversos traços da personagem histórica:
  • relação com a corte e as academias: “… e o outro reverendo (…) encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu de Gusmão.” (p. 175);
  • a construção da passarola: “Se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço chegar a voar um dia.” (p. 166);
  • o doutoramento em Cânones: “Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelido onomástico e forma escrita.” (p. 159);
  • as viagens ao Brasil e à Holanda.

Forma uma tríade com Baltasar e Blimunda (será a coincidência da letra inicial do nome próprio uma mera coincidência?) no que concerne à construção da passarola. Com efeito, estamos perante um verdadeiro trabalho de equipa, pois o sonho pertence aos três, o empenho é colectivo, bem como a glória e a desgraça (“Mas o padre diz que não, que falará a el-rei, por estes dias, far-se-á então a prova da máquina, e, correndo bem tudo, como se espera, para todos haverá glória e proveito, a fama levará a todas as partes do mundo notícia do feito português, com a fama virá a riqueza, O que meu for é de nós três, sem os teus olhos, Blimunda, não haveria passarola, nem sem a tua mão direita e a tua paciência, Baltasar…” (p. 191).Por outro lado, a união e a harmonia reinantes entre eles estão patentes na simbologia do número 3, que exprime a ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Ele sintetiza a triu-nidade do ser vivo ou resulta da conjunção de 1 e do 2, produto neste caso da união do céu e da terra. No entanto, no que diz respeito à vontade humana, o padre é o mais fraco dos três, pois foge, renegando, de certa forma, a sua obra e tentando destruí-la, enquanto Baltasar e Blimunda lutam até ao fim, enfrentando dogmas, preconceitos e a própria Inquisição.
Bartolomeu de Gusmão é, pelo exposto, um inventor e um grande orador sacro, desfrutando de uma fama aproximada à do Padre António Vieira.
Interiormente inquieto em matéria de fé (p. 170), assume uma postura nada dogmática que contrasta com o clero da época e que se espelha nas leituras diversificadas que faz, como se objectivasse alcançar a totalidade do Saber: “Abandonara a leitura consabida dos doutores da Igreja, dos canonistas, das formas variantes escolásticas sobre essência e pessoa, como se a alma já estivesse extenuada de palavras, mas porque o homem é o único homem que fala e lê, quando o ensinam, embora então lhe faltem ainda muitos anos para o homem ascender, examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamento velho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco, pelos judeus chamado Tora, e o Alcorão…” (p. 176). Daqui resulta a construção de uma personagem complexa e algo excêntrica; é um ser fragmentário e atormentado, segundo as palavras do narrador: “Três se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico (…), se o inventor da máquina de voar (…) se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem…” (p. 176).
É uma das poucas personagens que se relaciona com dois mundos, o da corte e o do povo, que reagem diversamente ao seu sonho e às suas ideias – aquela olha-o com desconfiança (“Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo…”, p. 64); o povo, encarnado nas figuras de Baltasar e Blimunda, acolhe e participa naturalmente no seu projecto (“A Baltasar convencia-o o desenho, não precisava de explicações, pela razão simples de que não vendo nós a ave por dentro, não sabemos o que a faz voar, e no entanto ela voa, porquê, por ter a ave a forma de ave, não há nada mais simples…” (p. 68).
As intrigas e difamações da corte, juntamente com o medo da Inquisição, que está no seu encalço, acabam por o obrigar a fugir para Espanha, onde morre, louco, a 19 de Novembro.

Mulher Ideal

Mulher ideal ou como conseguir ler o jornal desportivo em paz e dar uma olhadela às brasas que vão desfilando...

Infante D. Francisco

D. Francisco é o cunhado da rainha, cujos sonhos eróticos povoa e que lhe deixam o travo amargo do pecado.
Aproveitando-se da doença do irmão, D. João V, insinua-se junto dela para tentar ascender ao trono.

Mariana Vitória

Mariana Vitória é uma princesa castelhana, destinada a ser desposada por D. José, o herdeiro da coroa portuguesa. Sobre elas, ficamos apenas a saber que “… gosta de bonecas, adora confeitos, nem admira, está na idade…”.

Princesa Maria Bárbara

A princesa, com "dezassete anos feitos", prepara-se para se casar com Fernando de Castela.
Tem "cara de lua cheia" e a pele "bexigosa", mas é "boa rapariga" e "... musical a quanto pode chegar uma princesa..." (p. 297).

terça-feira, 13 de maio de 2008

D. João V

O retrato do Rei é feito de forma indirecta, através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos, dos encontros com a madre Paula, das idas à câmara da Rainha, das conversas com o Tesoureiro.

Filho de D. Pedro e da rainha Maria Sofia de Neuburg, foi proclamado rei em 1 de Janeiro de 1707, tendo, no ano seguinte, casado com a princepa Maria Ana Josefa de Áustria, de quem teve seis filhos, a somar aos inúmeros bastardos que semeou pelo reino.
Preocupado com a ausência de descendentes legítimos e influenciado pelo poder da Igreja católica, faz a promessa de construir um convento em Mafra se, no prazo de um ano, a rainha gerar um descendente. A promessa é cumprida após o nascimento da princesa Maria Bárbara.
É infiel à rainha, adúltero, pois mantém inúmeras relações extra-conjugis, das quais resultaram os referidos filhos bastardos. A sua relação com ela é desprovida de qualquer afectividade, consiste no simples cumprimento de um dever.
É extremamente vaidoso, por isso compraz-se na contemplação do número ordinal romano V por ser comum ao Papa e a si próprio (cap. I); é servido por inúmeros criados (p. 13); exige que a data de sagração do convento seja um domingo que coincida com o aniversário do rei, daí que ocorra a 22 de Outubro de 1730; chega mesmo a comparar-se a Deus.
A questão da infertilidade do rei e da rainha traduz a mentalidade machista da época: "Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres, sim, por isso são repudiadas tantas vezes [...], porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há-de ser naturalmente suplicante." (cap. I).
Muito jovem (ainda não fez 22 anos no início da obra), é um rei cuja reinado se estende de 1706 a 1750, período de grande riqueza ("Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza..."), devido essencialmente ao ouro do Brasil, que permite a realização de grandes obras.
O narrador não se coíbe, ao longo do romance, de o ridicularizar (por exemplo, a única obra que edifica pelas próprias mãos, nos momentos de lazer, sem qualquer esforço ou risco, é uma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma . p. 165). O narrador aproveita também a figura real para uma reflexão sobre a igualdade entre todos os seres humanos:
  • muda com a idade (“É que ao contrário do que geralmente aceita o vulgo ignaro, os reis são tal e qual os homens comuns, crescem, amadurecem, variam-se-lhes os gostos com a idade…” – p. 277);
  • adoece como o mais comum dos mortais (“El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, (…) duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor de Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo e quanto temos cá fica…” – p. 112);
  • teme a morte;
  • por isso e por vaidade, já que seria apenas “o rei que mandou fazer e não o que vê feito…” (p. 289), se precipita na marcação da data de sagração do convento (pp. 288-289).

É retratado de forma contraditória: por um lado, é um devoto fanático que sacrifica o povo na edificação do convento, que assiste aos autos-de-fé e que utiliza as riquezas do reino para manter as pompas do clero; por outro, é o rei vaidoso que se compara a Deus e luxurioso que desrespeita a Igreja ao relacionar-se sexualmente com freiras, as esposas do Senhor (pp. 155-156), nomeadamente com a Madre Paula.

No entanto, é o mesmo rei que protege as pesquisas do Padre Bartolomeu de Gusmão e incentiva / promove as artes em Portugal (contrata, por exemplo, artistas como Domenico Scarlatti).

Descontrair: Exames à porta!

Esta série tinha como personagem central um boi e era delirante: chamava-se Bocas e andava sempre metido em confusões.

Amigas da Onça


Esta é dedicada às minhas amigas (?) AA e DP.


domingo, 11 de maio de 2008

D. Maria Ana Josefa

De origem austríaca (veio da Áustria há dois anos), tornou-se rainha de Portugal ao casar com D. João V.
D. Maria Ana é retratada como uma personagem muito religiosa, beata até, submissa e medrosa. A sua relação matrimonial deixa-a extremamente insatisfeita, amorosa e sexualmente, desempenhando sempre um papel passivo. Essa insatisfação leva-a a ter sonhos eróticos com o cunhado, o infante D. Francisco, facto que lhe acarreta novos problemas: vive atormentada pela consciência de estar em pecado, pois considera os sonhos um acto vergonhoso e criminoso, um pecado, visto que atentam contra a castidade. Procura ultrapassar os seus remorsos cumprindo penitência, rezando e peregrinando pelas igrejas.
Vive num ambiente de repressão, do qual procura fugir através do sonho, mas a sua vida na corte portuguesa é extremamente infeliz.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Exercício 1 - Romance Histórico

Leia o seguinte texto.


Assim, diremos que o romance histórico é um tipo de narrativa ficcional em que, de maneira evidente, se manifestam as chamadas modalidades mistas de existência (...) o que significa que personalidades, eventos e espaços que conhecemos ou podemos conhecer como históricos [D. Afonso Henriques, o Convento de Mafra (...)] coexistem com personagens, eventos e espaços ficcionais. A possibilidade de reconhecermos como históricas essas entidades imigradas na ficção decorre do facto de elas manterem certas propriedades, por vezes até acessórias, mas culturalmente adquiridas pelo leitor, o que justamente permite esse efeito de real [p. ex.: (...) o convento de Mafra foi mandado construir por D. João V (...)].
De um ponto de vista narratológico, o romance histórico é, numa acepção estrita, um subgénero narrativo, concretização, como tal, de um género narrativo (o romance, neste caso), num determinado contexto histórico-cultural (...). Esse contexto histórico-cultural é o do Romantismo europeu; nele, o romance histórico surge como instrumento de configuração de um imaginário em que valores, figuras e episódios históricos (em especial medievais) se relacionam com uma certa forma de idealizar o passado; é nesse passado que romancistas como Walter Scott ou Alexandre Herculano quase sempre situam uma autenticidade e um vigor perdidos, mas susceptíveis de serem evocados (por vezes com alguma nostalgia, mas também com inegável propósito ideológico), quando se trata de repensar as nacionalidades, a sua essência e os seus fundamentos históricos.

Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, in Dicionário de Narratologia (Livraria Almedina)


De seguida, realize o exercício AQUI.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Vida

José Saramago (1922 - ?)

  • José Saramago, neto de avós camponeses, nasceu a 16 de Novembro de 1922, na aldeia da Azinhaga, pertencente ao concelho da Golegã.
  • Por volta dos dois anos de idade, emigrou para Lisboa, cidade onde decorreu grande parte da sua vida, sem nunca ter cortado as ligações a Azinhaga, onde se deslocou com grande frequência.
  • Concluiu o ensino secundário, tendo frequentado o ensino liceal e técnico, mas não prosseguiu os estudos por dificuldades económicas.
  • A sua primeira ocupação profissional foi a serralharia mecânica, seguindo-se a de desenhador, a saúde e a previdência social (enquanto simples funcionário), a de tradutor, editor e jornalista.
  • Trabalhou durante doze anos numa editora, onde se destacou enquanto director literário e de produção.
  • Colaborou com a publicação Seara Nova na qualidade de crítico literário.
  • No início da década de 70, esteve integrado na redacção do Diário de Lisboa, onde foi comentador político.
  • Entre Abril e Novembro de 1975, foi director-adjunto do Diário de Notícias.
  • Profundamente audodidacta, adquiriu um vasto conjunto de saberes (literários, históricos, filosóficos...), apesar da ausência de estudos superiores.
  • A partir da segunda metade da década de 70 (1976), passou a viver, exclusivamente, do seu trabalho literário: primeiro como tradutor, depois como autor.
  • Fez parte da direcção da Associação Portuguesa de Escritores.
  • Entre 1985 e 1994, presidiu à Assembleia-geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
  • No que diz respeito a prémios literários, em 1993, foi galardoado com o Prémio Vida Literária, atribuído pela APE, e, em 1995, com o Prémio Camões. Em 1999, foi-lhe atribuído o doutoramento honoris causa pela Universidade de Nottingham (Inglaterra); em 2000, pela Universidade de Santiago do Chile; em 2004, pela Universidade de Coimbra.
  • Desde 1985, é comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; a partir de 1991, foi ordenado cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras Francesas.
  • Na década de 90, envolveu-se numa polémica com Sousa Lara, membro do governo de Cavaco Silva na área da Cultura, a propósito da candidatura do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, recusada por aquele, baseado em argumentos de cariz religioso.
  • Em Fevereiro de 1993, na sequência do seu diferendo com Sousa Lara, passou a ter residência na ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, Espanha, onde ainda hoje reside, na companhia da esposa, de origem espanhola - Pilar del Rio -, uma jornalista;
  • Em 1998, foi objecto da maior distinção concedida a um escritor: recebeu o Prémio Nobel da Literatura;
  • A sua vasta obra, concebida num período de cerca de trinta anos, encontra-se traduzida em diversas línguas, tendo sido (e continuando a ser) objecto de vários estudos académicos. Actualmente, em Portugal, o romance Memorial do Convento faz parte do leque de obras de leitura obrigatória do programa de Português do décimo segundo ano.

Obra

1. Romance

  • Terra do Pecado (1947) - 1.ª obra;
  • Manual de Pintura e Caligrafia (1977);
  • Levantado do Chão (1980);
  • Memorial do Convento (1982);
  • O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984);
  • A Jangada de Pedra (1986);
  • História do Cerco de Lisboa (1989);
  • O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991);
  • Ensaio sobre a Cegueira (1995);
  • Todos os Nomes (1997);
  • A Caverna (2000);
  • O Homem Duplicado (2002);
  • Ensaio sobre a Lucidez (2004);
  • As Intermitências da Morte (2005).
2. Poesia

  • Os Poemas Possíveis (1966);
  • Provavelmente Alegria (1970);
  • O Ano de 1993 (1975).
3. Teatro

  • A Noite (1979);
  • Que Farei com Este Livro? (1980);
  • Dom Giovani, ou o Dissoluto Absolvido (2005).

4. Crónica, Ensaio, Memória

  • Deste Mundo e do Outro (1971);
  • A Bagagem do Viajante (1973);
  • A Estátua e a Pedra (1966);
  • As Pequenas Memórias (2006).

5. Conto

  • Objecto Quase (1978);
  • O Conto da Ilha Desconhecida (1997);
  • A Maior Flor do Mundo (2001).

6. Diário

  • Cadernos de Lanzarote - I (1994);
  • Cadernos de Lanzarote - II (1995);
  • Cadernos de Lanzarote - III (1996);
  • Cadernos de Lanzarote - IV (1997);
  • Cadernos de Lanzarote - V (1998).

7. Viagens

  • Viagem a Portugal (1981).

Análise da Obra

1. Autor:

1.1. Vida

1.2. Obra

2. Contexto.

3. Influências

4. Acção:


5. Personagens:

6. Tempo

7. Espaço

8. Simbologia

9. Materiais:

10. Canções de Intervenção:

"Os Vampiros"

Zeca Afonso (1963)

PLAY

A letra deste poema cantado por José "Zeca" Afonso tem uma fortíssima carga metafórica, como não podia deixar de ser no auge do Salazarismo, do lápis azul e da PIDE.

De facto, parece claro que a referência aos vampiros se refere à polícia política do regime e a todos quantos, quais Vicentes, a troco de favores ou recompensas de vária ordem, denunciavam aqueles que ao dito regime se opunham.

Os vampiros são apresentados, no poema, como os seres que, às escondidas ("Pela noite calada") e disfarçadamente ("Com pés veludo"), surgem subrepticia e inesperadamente em qualquer lugar e momento ("Poisam nos prédios / Poisam nas calçadas"). Todas as pessoas que se deixam amedrontar pela sua presença e pelo seu aspecto ("Se alguém se engana / Com seu ar sisudo / E lhes franqueia / As portas à chegada") e lhes franqueiam as portas, vêem o seu sangue chupado, isto é, perdem a vida (sangue = elemento vital = vida).

Os vampiros têm a protecção e agem a mando do poder ("Dançam a ronda / No pinhal do rei") e geram o terror, semeando violência, opressão, injustiça ("No chão do medo / Tombam os vencidos / Ouvem-se os gritos / Na noite abafada / Jazem nos fossos / Vítimas dum credo"). O ambiente, de facto, era «abafado», isto é, opressivo. E os vampiros lançam-se sobre as suas vítimas de forma inexorável e incessante (observar a metáfora "O sangue da manada"), conservando a sua vida, tal como o animal mítico do cinema, à custa da vida dos outros.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Rita

O casal Manuel e Rita simboliza o povo oprimido e esmagado. Ambas as personagens têm consciência da injustiça e miséria e de que são meros joguetes nas mãos dos poderosos. Sentem-se impotentes para alterar a situação e Gomes Freire é uma espécie de “Messias”, daí, talvez, a agressividade de Manuel em relação a Matilde, quando esta lhes pede que se revoltem e o ajudem a libertar. A prisão do general era para eles uma espécie de traição à esperança que o povo depositava nele.
Manuel e Rita simbolizam também a desesperança, a desilusão, a frustração do povo perante a situação miserável e opressiva em que vivem.

Vicente

  • é um elemento do povo que se encontra descontente, frustrado e revoltado com a sua condição social; tem inclusive vergonha das suas origens;
  • procura ultrapassar esse sentimento de inferioridade através de uma ascensão político-social rápida, obtida pela denúncia e pela traição;
  • o seu percurso é marcado por várias etapas:
    – provocador e agitador (início do acto I), procura denegrir a imagem de Gomes Freire;
    – espião (vigia a casa do general);
    – delator (espera uma recompensa ao denunciar o general);
    – acusador (confirma a existência das reuniões e indica o nome dos conspiradores);
  • representa a hipocrisia, o servilismo, o materialismo e o oportunismo daqueles que não olham a meios para atingir os seus fins;
  • adulador (conquista as simpatias dos governadores, pactua com a polícia);
  • calculista e hipócrita (responde a D. Miguel com frases dúbias para se certificar da sua posição em relação ao primo);
  • apenas acredita em duas coisas: no dinheiro e na força;
  • como recompensa do seu “trabalho”, é promovido a chefe da polícia, passando a ignorar e maltratar os conhecidos e os da mesma classe: “Olhou para mim como se nunca me tivesse visto. Estendi-lhe a mão e [Vicente] deu-me uma cacetada na cabeça!”;. suscita no espectador/leitor antipatia, no entanto Vicente é lúcido na análise que faz da sua situação de origem e da força corruptora do poder.

Antigo Soldado

Esta personagem representa os soldados que consideravam Gomes Freire de Andrade um herói. O “antigo soldado do regimento de Gomes Freire” (p. 13) mostra-nos a influência do general sobre os seus homens. Por um lado, faz deles defensores da liberdade, por outro, deixou-lhes o orgulho e a saudade dos tempos em que combatiam com ele (p. 17). “Gomes Freire é o seu herói.” (pp. 19 a 22), mas, como os outros populares, o Antigo Soldado não tem capacidade de reacção: “Prenderam o general... Para nós, a noite ainda ficou mais escura... E agora? (Ninguém responde)” (p. 99).
Ele, que agora se inclui no grupo dos populares miseráveis, recorda, nostálgica e orgulhosamente, os tempos em que combateu no exército comandado por Gomes Freire: “Aqui onde me vêem já andei nas guerras...” (p. 19). Mas agora ele é a prova viva de que Vicente tem razão quando afirma que os soldados, que fazem parte do povo, servem os generais só enquanto têm capacidades, depois são abandonados à sua vida miserável: “Este homem está aqui porque já não serve para nada. Ouviram? Está aqui porque já não interessa aos generais. O que eles querem é servir-se da gente! Quando um homem chega a velho e já não pode andar por montes e vales, de espingarda às costas, para eles se encherem de medalhas, tratam-no como um pobre fugido à polícia: abandonam-no, mandam-no para a porta das igrejas pedir esmola...” (p. 22).
No Acto II, são visíveis o sofrimento e a decepção do Antigo Soldado quando se dá a prisão do general. Acabrunhado, afirma: “Prenderam o general... Para nós, a noite ainda ficou mais escura...” (p. 80). É evidente o pessimismo da personagem ao fazer esta afirmação. Associados à noite surgem o obscurantismo em que vivia o povo e o desalento dos que acreditavam no general. Não há, agora, qualquer réstia de luz, isto é, qualquer esperança. Tristemente, o 1.º Popular, perante as palavras do Antigo Soldado, afirma em tom profético: “É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...” (p. 80). O clarão das fogueiras corresponderá à morte de Gomes Freire de Andrade, mas não, contrariamente ao que os governadores pensavam, ao final da luta pela liberdade.

Manuel

Manuel é o mais consciente dos populares.
Os andrajos que veste reflectem a miséria em que vive, enquanto as suas atitudes demonstram grande impotência para alterar a situação, da qual resulta um sentimento de conformismo e até de resignação, bem visível no início de ambos os actos, não obstante a esperança inicial posta no general Gomes Freire.
Através desta figura, Sttau Monteiro denuncia o sacrifício do orgulho nacional, vítima das invasões francesas, da opressão dos militares ingleses e da ausência do rei no Brasil. Por outro lado, é visível que Manuel compartilha da falta de ânimo do povo perante o ambiente de repressão e medo e que está muito consciente da situação que o rodeia (miséria, medo, ignorância, repressão, autoritarismo).
Após tomar conhecimento da notícia da prisão do general, fica profundamente desalentado e chega a ser agressivo para com Matilde, reconhecendo, no entanto, posteriormente, que a sua atitude foi injusta e desproporcionada.

Frei Diogo de Melo

Frei Diogo de Melo é uma personagem que contrasta claramente com principal Sousa, pois, se o primeiro encarna os valores cristãos e representa uma Igreja pura, espelho de honestidade, fé, amor ao próximo, caridade cristã e compaixão, o segundo defende e pratica o seu oposto.
De facto, Frei Diogo de Melo é um homem sério (p. 13) e confessor de Gomes Freire, daí que reconheça que este foi vítima de uma injustiça, para a qual contribuiu a Igreja. Chega mesmo a elogiá-lo, o que provoca a ira de principal Sousa.
Nos momentos em que ela patenteia todo o seu desespero, o frade pede a Matilde que “Não faça a Deus o que os homens fizeram ao general Gomes Freire: não O julgue sem O ouvir.” (p. 128), fazendo uso constante de uma linguagem que exprime sensibilidade, inocência e compreensão da dor.
No entanto, é de destacar que, embora contrarie, de certo modo, o poder religioso instalado, não o confronta abertamente (pp. 126-127).