terça-feira, 20 de maio de 2008

Blimunda

Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descrito diversas vezes - de facto, possui uns olhos misterioros, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, é às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - p. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (p. 103).
Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro no auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, observar por dentro das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos). Esses seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto, ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que se possa encontrar.
É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela suas ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").

O seu único amor é Baltasar, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (p. 168). Com efeito, apaixonada por Baltasar, mantém com ele uma eterna relação de amor, de cumplicidade e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer; · o amor que vivem é um amor não-cristianizado mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular (“O casamento e a mortalha no céu se talha”), convivendo em harmónica união (“Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais…” – p. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza um ciclo completo, uma perfeita dinâmica. Talvez por isso nunca tenham tido filhos.

Por outro lado, é interessante notar que o envelhecimento físico não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos de Baltasar, Blimunda continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento a nível físico que os atingiu, após a peregrinação em busca de “vontades” por Lisboa, levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: “… cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas…” (p. 181).
Blimunda, tal como Baltasar, ajuda na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das “duas mil vontades”, princípio mágico que fará voar a passarola; recolha essa feita na procissão do corpo de Deus, porque é uma ocasião em que as almas e os corpos estão debilitados e não são capazes de segurar as vontades. Essa esforço deixou Blimunda doente, “uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele”.

Com o decorrer· da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XIII, p. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte. sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (Padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti, Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao olhar de Blimunda e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e o seu destino foi procurá-lo durante nove anos – durante essa procura acabou por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o próprio marido em defesa da sua mulher: “Do outro lado do convento, num rebaixo (…) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso.” (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequênciua desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: “… que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar…” (p. 354). Na sua incansável demanda, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, precisamente o mesmo em que se encontrava António José da Silva, o Judeu, autor de comédias de bonifrates.

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