terça-feira, 20 de maio de 2008

Baltasar Mateus

Baltasar Mateus - a primeira das personagens ficcionais deste trabalho - é um soldado recém-chegado da Guerra da Sucessão espanhola (1704 - 1712), natural de Mafra e com 26 anos. Aproveita uma deficiência física - é maneta, em virtude de ter perdido a mão esquerda na aguerra, "estraçalhada por uma bala" -, que provocou a sua expulsão do exército, o que significa que, à semelhança do Bailote de Aparição ou do Antigo Soldado de Felizmente há Luar!, representa todos aqueles que são explorados até ao tutano enquanto saudável e que, de pois, são desprezados e abandonados quando já não têm utilidade prática.
Essa expulsão leva-o a vaguear como pedinte em Évora com o intuito de fazer um gancho que lhe substitua a mão perdida até chegar a Lisboa, onde conhece Blimunda num auto-de-fé.
O envelhecimento físico que vai manifestando ao longo da obra, à medida que os anos passam, não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Blimunda, sobretudo porque aos seus olhos Baltasar continua o mesmo: “… tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombos, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo…” (p. 326)[1];
Mais tarde tornar-se-á um dos operários que trabalham na construção do convento como servente ou a fazer carretos com os carros de mão, participando igualmente na construção da passarola, factos que contribuem para o agigantar da sua imagem ao longo do romance, chegando mesmo a atingir uma espécie de divinização: “(…) Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo (…)”; “Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar.” (cap. VI, p. 68).
No fundo, Baltasar é apresentado como um marginal, lutando pela sobrevivência e não hesitando em matar, uma espécie de herói pícaro[2]:
  • foi soldado na Guerra de Sucessão espanhola, donde foi expulso por ter ficado mutilado da mão esquerda;
  • sem salário, inicia uma vida aventureira e errante: pede esmola para conseguir ter um gancho de ferro, mata um homem que o quisera roubar e conhece João Elvas, rufia e antigo soldado;

Além disso, encarna a crítica à inutilidade da guerra, já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios: “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas (…) por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum…” (p. 36).


[1] O narrador faz aqui uma distinção entre duas perspectivas: a “nossa”, objectiva, externa, que só vê aparências; a de Blimunda, subjectiva, interna, que “vê” mais longe e mais fundo, porque observa com os olhos do amor.

[2] A picaresca caracteriza-se por uma série de peripécias e aventuras vividas por uma personagem (o herói pícaro) da baixa condição social, que serve a vários amos, em toda a espécie de expedientes, esfomeado, errante, com um código de honra muito duvidoso que consiste em safar-se da forma mais airosa possível de toda a sorte de dificuldades, principalmente através da sua astúcia e habilidade pouco escrupulosas.

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